Após 150 anos, a primeira experiência de um Estado proletário ainda nos deixa
ressonâncias e inquietações dignas de uma revisita a este distinto e emblemático processo
insurrecional.
O ano de 2021, observado sob a óptica da crise social, econômica e sanitária,
trouxe à tona categorias próprias e atuais de interpretação da situação geopolítica e dos
conflitos regionais de toda espécie. Todavia, o brado do passado ainda pode ser ouvido e
declama suas reminiscências tão presentes no momento imediato, anunciando assim seu
legado, lições, memórias e traumas. De tal forma que, a efeméride dos 150 anos da tomada
do poder por parte do operariado parisiense é, ainda hoje, motivo de celebração, suspeita,
inquietação e polêmica nos mais diversos setores da sociedade contemporânea. Assim, a
Comuna nos deixa uma herança de múltiplos significados com um impacto contundente
na historiografia, na sociologia e nas lutas políticas de todo o mundo. Em vista disso,
alguns fragmentos deste passado merecem ser rememorados.
A priori, contextualizar os rumos históricos desta experiência exerce uma
interessante função introdutória nesta breve reflexão de cunho antológico sobre as
múltiplas teias de significado entorno deste evento. Por conseguinte, é digno postular
inicialmente que esta revolução, cuja duração não excedeu mais do que 71 dias (de 18 de
março à 28 de maio de 1871), surge em meio ao crepúsculo da velha ordem feudal e com
este, a eclosão de uma nova estrutura de sociedade. Como afirma Hobsbawm, “O triunfo
global do capitalismo é o tema mais importante da história nas décadas que sucederam
1848.” (HOBSBAWM, 2009. P.17). Logo, a aurora de um projeto republicano radical e
independente, com uma forma política e econômica aversa ao consagrado modelo
burguês, torna a Comuna além de uma das mais emblemáticas experiências
revolucionárias do século XIX, uma contraposição objetiva ao modelo de sociedade que
se constituía na Europa, uma amalgama das contradições da sociedade do capital
sintetizadas em uma experiência que, segundo Marx, veio “[…]não para suprimir a forma
monárquica da dominação de classe, mas a dominação de classe ela mesma” (MARX,
2001. P.56).
Por conseguinte, de maneira mais esmiuçada, podemos enxergar que, a Comuna
de Paris nasce em um contexto da Guerra Franco-Prussiana (1870-1871) e à profunda
crise política intensificada pelo conflito bélico que culmina na deposição de Luís
Bonaparte do poder e a morte do Segundo Império. A crise do regime bonapartista,
assinalada pelo conflito com a burguesia industrial, com a igreja católica, e com o
movimento operário, que via os lucros crescendo 200% entre 1850 e 1870 em paralelo
com o ínfimo crescimento da renda salarial de 28%, assinalaram, junto à conjuntura da
guerra contra a Prússia, o fim deste regime em França e a formação de um governo
provisório simbolizado fundamentalmente na figura de Adolphe Thiers e na renovação
das forças políticas da Assembleia Nacional. Como afirma o historiador David Maciel, a
correlação de forças deste período aponta para uma escalada de um conflito entre o bloco
de oposição e o governo de Luís Bonaparte para um “[…] antagonismo aberto entre a
grande burguesia, composta pelas frações industrial, bancária, comercial e agrária, e o
conjunto das classes trabalhadoras, sob a direção proletária.” (MACIEL, 2011. P.128).
Este conflito, marcado pelo embate entre capital e trabalho, está inerentemente
ligado aos evidentes progressos feitos pelo movimento operário francês ao longo da
década de 1860. O desenvolvimento do capitalismo na França durante o Segundo Império
e o fenômeno da proletarização dos camponeses e o exponencial crescimento do
proletariado urbano francês são sintomas que anunciavam a conjuntura que daria origem
à Comuna e marcavam o período de crise vivido pelo país, neste ponto, o proletariado
parisiense já representava dois terços da população economicamente ativa e quase 40%
do total da população (MACIEL, 2011. P.129). Esta composição social conferirá à
Comuna de Paris um simbolismo histórico novo quando comparado às revoluções
anteriores, um caráter popular, vindo de baixo para cima, encabeçado fundamentalmente
pela classe majoritária, o operariado, e não pela elite ou frações desta.
Frente a este cenário de aguçamento dos conflitos de classe, da pobreza iminente
e da marginalização da classe operária através da reforma urbana de Paris, empreendida
pelo Barão Haussmann no decorrer do Segundo Império para conter insurreições e
revoltas, o proletariado parisiense se engajava em uma radical campanha de mobilização
e organização. Assim, são criadas “[…]centenas de cooperativas de produção ou consumo,
dezenas de sindicatos e sociedades de poupança e empréstimos, inúmeros clubes,
bibliotecas e centros de cultura e educação, além do compromisso com a sociedade
igualitária e a revolução social.” (MACIEL, 2011. P.130). Tudo isso em paralelo ao
fortalecimento de um movimento grevista. Para além, é interessante destacar a
pluralidade política presente no seio do movimento operário parisiense da época, disputas
de posições e influência eram travadas entre proudhonistas, blanquistas, membros da
Associação Internacional do Trabalho (AIT), e os chamados “homens de Marx”. Neste
sentido, o processo de radicalização política e ideológica vivido pelo operariado
parisiense caminha lado a lado com as teses da Primeira Internacional dos Trabalhadores,
na qual a Comuna pode ser entendida como a síntese destas teses. Entre elas está a
perspectiva auto organizativa, anticapitalista e de que a libertação dos trabalhadores só
pode ser feita pelos próprios trabalhadores.
Consequentemente, o governo de Luís Bonaparte, entendido por Marx como
forma mais acabada do burocratismo burguês na sociedade, já não conseguia mais
sustentar no final da década de 1860, o mito da Glória do Império Francês. Sua decadência
antevia a notória oposição que se desenvolvia contra si, expressa majoritariamente por
setores moderados que propugnavam uma oposição parlamentar (nos quais localizava-se
amplos setores da burguesia industrial), neojacobinos identificados pela pequena
burguesia e que defendiam uma insurreição republicana e democrática e os socialistas
compostos pelo movimento operário. O “golpe de misericórdia” no governo bonapartista
se dera com a fulminante derrota na Guerra Franco-Prussiana, perdendo assim as regiões
de Alsácia e Lorena e marcando então o fim desastroso da política externa do imperador
francês. A derrocada do Segundo Império escala rapidamente e, em 2 de setembro de
1870 o imperador e grande parte do alto comando militar, juntamente à um quarto do
exército francês caem prisioneiros após a batalha de Sedan. Em 4 de setembro o projeto
imperial está oficialmente encerrado e uma insurreição proletária e da pequena burguesia
anuncia a chegada da República.
Por mais que levado a cabo pelas classes populares e pela pequena burguesia, logo
se identifica o caráter de classe da nova república e do governo provisório. Composto
pela burguesia republicana, os chamados socialistas moderados ou “esquerda
parlamentar”, e outros representantes das classes dominantes, como monarquistas
orleanistas, legitimistas unificados entorno dos interesses do Conde de Chambord e até
mesmo partidários do último monarca. Assim, o descontentamento popular é mantido ao
perceber o conteúdo contrarrevolucionário e antipopular da nova ordem política.
Ainda assim, mesmo com o exército francês capitulado, a Prússia continua sua
ofensiva militar no objetivo de anexar territórios franceses e impor à França uma pesada
indenização, o que aumenta o fervor popular do povo parisiense que já se organiza
militarmente entorno da Guarda Nacional (esta composta por cidadãos de maioria pobres
e voltada ao trabalho militar voluntário). O imperativo da defesa nacional motivava as
camadas populares em favor de uma guerra revolucionária e da instauração de uma
Comuna autogerida pelos trabalhadores em propósito da resistência contra a invasão
externa. A escalada das tensões aumenta, com o governo provisório pressionando por um
armistício e pela capitulação do povo francês. Em meados de setembro de 1870 uma
insurreição instala a Comuna em Lyon e o mesmo ocorre em dezembro em Marselha, a
radicalização do operariado francês caminha a largos passos no sentido de uma guerra
civil. E mesmo com os esforços do governo em conter esta radicalidade, a ofensiva
Prussiana mobiliza-se no bombardeamento de Paris nos dias 5 e 6 de janeiro de 1871 e
na ocupação de Versalhes, proclamando assim o Império Prussiano no dia 18 do mesmo
mês.
Enquanto atua no cerceamento das liberdades civis, na repressão aos
trabalhadores, na censura dos jornais proletários, o governo provisório assina o armistício
com o governo Prussiano de Otto Von Bismarck, cuja principal condição era a rendição
de Paris. E como parte do acordo com os prussianos, o governo provisório francês chama
novas eleições para a formação de uma nova Assembleia Nacional e um novo governo,
na tentativa de utilizar do sufrágio como legitimador da ordem política instaurada. E como
resultado do voto camponês e das províncias, as forças conservadoras e reacionárias
ganharam força, exceto em Paris, onde 90% dos deputados eleitos são contra a rendição
aos prussianos. Este processo eleitoral atua na intensificação da ruptura de Paris com o
governo francês.
De tal maneira, o novo governo e a Assembleia Nacional passam a ter como
objetivo a submissão de Paris e sua rendição definitiva. A latente guerra civil se explicita
numa escalada progressiva, antagonizando, de um lado o governo e a Assembleia junto
aos prussianos, e de outro os trabalhadores de Paris e a Guarda Nacional. Com o aparato
estatal transferido integralmente para Versalhes, as tropas prussianas ocupam Paris entre
1 e 3 de março de 1870 na tentativa de confiscar o armamento da Guarda Nacional. Nesse
meio tempo a classe burguesa parisiense em sua maioria foge para Versalhes, enquanto o
ataque prussiano fracassa e a Guarda Nacional toma o poder na cidade e proclama a
Comuna de Paris.
Esta breve reconstituição histórica auxilia na percepção da complexidade do
fenômeno que Marx caracteriza como ‘um raio em uma tarde de céu azul’ e que desafiou
tanto o entendimento burguês. E, de fato, a Comuna se provou um acontecimento inédito
por ter, pela primeira vez, superado os limites do Estado Burguês, inaugurado o primeiro
governo proletário, criado uma forma de organização contra hegemônica e realizado a
primeira revolução proletária e socialista da história. No dia 18 de março de 1871, a
bandeira vermelha, simbolizando a República do Trabalho tremulou sobre o Hôtel de
Ville, anunciando um novo tipo de sociedade que, como examinava Marx, compunha “[…]
a forma política enfim descoberta para se levar a efeito a emancipação econômica do
trabalho. (MARX, 2011. P.59).
Inspirados no ideal jacobino da Revolução Francesa de 1789, os Communards
(título dado aos integrantes deste projeto de sociedade) empreenderam significativas
mudanças no funcionamento daquela cidade. Como afirma Lenin, “[…]a Comuna
constituía uma ameaça de morte ao Velho Mundo, baseado no avassalamento e na
exploração.” (LENIN, 1911). Dentre as principais transformações ocorreu a dissolução
do exército oficial e da polícia e o estabelecimento do povo em armas através da Guarda
Nacional, proclamou a separação da Igreja do Estado, fora universalizada a educação,
instaurado o sufrágio universal masculino com mandatos revogáveis aos conselheiros da
comuna, o fim da distinção entre o poder executivo e legislativo, revogabilidade e
responsabilidade dos cargos judiciais, fim da política de multas que atingia unicamente a
classe trabalhadora, fim do trabalho noturno e etc. Mas sobretudo, a Comuna coletivizou
a propriedade das fábricas e industrias que estavam abandonadas ou paralisadas,
entregando-as aos trabalhadores. Este último fator evidencia já a presença de uma ideia
de socialização dos meios de produção.
Deste modo, como conclui Maciel, esta revolução que tinha caráter
exclusivamente político, fundamentado na perspectiva de mudança de regime do Estado
burguês, evolui para uma revolução social que não só quebra o Estado burguês, como
subverte sua lógica de funcionamento, quebrando assim seu caráter de reprodução da
exploração do trabalho (MACIEL, 2011. P.125). Assim, surge da Comuna então um ‘antiEstado’, o qual Friedrich Engels, 20 anos após a queda da Comuna aponta a existência de
uma “ditadura do proletariado”, com uma radical expansão democrática. Outro fator que
há de ser relembrado é o caráter internacionalista desta revolução, para além dos
Communards possuírem a intenção de inspirar a criação de novas comunas, os
trabalhadores de outros países foram aceitos e tiveram ampla participação na comuna
parisiense, lançando base assim para um regime que superava a noção de nacionalidade
do Estado burguês. Nas palavras de Marx: “A Comuna anexou à França os trabalhadores
do mundo inteiro.” (MARX, 2011. P.63)
A derrocada da Comuna veio no dia 28 de maio, quando as elites francesas e
prussianas, em conluio contra o proletariado parisiense, investiram militarmente juntas
contra a Comuna e deram fim à experiência. As tropas de Bismarck abriram caminho para
os exércitos de Versalhes cercar e posteriormente massacrar os trabalhadores parisienses
numa brutal investida em meados do ano de 1971. Lenin aponta que cerca de 30 mil
parisienses foram mortos pela soldadesca enfurecida, outros 45 mil foram detidos,
exportados ou enviados ao trabalho forçado, e num total, em média 100 mil parisienses,
trabalhadores pobres de todos os ofícios, perderam suas vidas (LENIN, 1911).
O fim da Comuna deixara então a lição de que a burguesia, ao se ver coagida a
optar entre a submissão à um governo proletário ou a uma potência estrangeira, buscou
logo refúgio na segunda. E que, a falência das tendências políticas compositoras da
Comuna em defender seu regime, denota sua obsolescência. Além da elucidação de que
sem a quebra da maquinaria estatal burguesa pelos próprios trabalhadores, sua
emancipação social é incerta e pode resultar numa nova dominação de classes e num novo
Estado (MACIEL, 2011. P.146).
Outra grande herança legada pela Comuna às lutas políticas populares que se
seguiram e que não pode ser esquecida é o papel central das mulheres na revolução. Estas
que já eram impactadas pelo novo regime através da obrigatoriedade de sua educação e a
proibição da prostituição como forma de exploração dos corpos femininos, também
compunham a vanguarda do processo de transformação social através de sua participação
militar, no comércio, nos clubes de mulheres e na “União das Mulheres pela Defesa de
Paris e pelo Cuidado aos Feridos”. Em determinados momentos, como nas barricadas de
Place Blanche, Batignolles entre outros, as mulheres se mostraram tão revoltadas e
intransigentes quanto os homens, por vezes até mais. Michel cita a cifra de dez mil
combatentes femininas, enquanto Serman verifica que, após a Comuna, 1051 mulheres
foram presas, sendo 71% trabalhadoras. Ainda assim, as mulheres foram excluídas do
sufrágio e da representação nos Conselhos da Comuna
Dando seguimento à esta análise, todavia sob um espoco mais teórico,
averiguamos a existência de diversas polêmicas relacionadas à Comuna de Paris. Na
historiografia, dentre as mais conhecidas, estão a levantada por Jacques Rougerie,
problematizando o caráter operário da Comuna sob o argumento de que pelo baixo
desenvolvimento do capitalismo na França, e a maior identificação com os conflitos da
Primavera dos Povos do que propriamente com o proletariado moderno, a Comuna tratarse-ia então de uma revolução democrática e republicana, de tal modo que caracterizar a
Comuna como uma revolução operaria constituiria um anacronismo. Outrossim, Henri
Lefebvre argumenta que a Comuna pode ser entendida como herdeira da ideia da
“República Social” deixada pela Revolução Francesa, ademais, George Rivier acrescenta
que, aos moldes das relações produtivas da França no final do século XIX, os
trabalhadores parisienses eram o que se poderia chamar de ‘operariado’, tendo este um
caráter diferente do operário inglês que já carregava traços industriais, mas ainda assim
não apresentando discrepâncias quanto ao uso do termo. De tal forma que, a Comuna
pode sim ser compreendida como um governo operário e que a revolução não fora o
crepúsculo das revoluções iniciadas em 1848, mas sim a aurora de um novo fenômeno
histórico.
Por fim, cabe ressaltar a importância da Comuna na sociologia, com seu impacto
na obra marxiana com destaque em “A Guerra Civil na França” (1871), na teoria do
Estado de Lenin em “O Estado e a Revolução” (1917) entre outros. Na historiografia,
como demonstra Hobsbawm em “Era do Capital” (1975) nos debates conceituais como
já mencionados e na vasta produção historiográfica sobre os mais variados temas relativos
à Comuna. E também nas lutas políticas que atravessaram o século XX e continuam
marcando presença nas ‘trincheiras’ atuais. O estudo desta revolução social que marcara
o mundo é, além de um rico tesouro do passado, um farol que ilumina o futuro.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
ABENDROTH, Wolfgang. A história social do movimento trabalhista europeu. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1977.
BOITO JR., Armando. “Estado e transição ao socialismo: a Comuna de Paris foi um poder
operário?” In; Estado, política e classes sociais: ensaios teóricos e históricos. São Paulo:
Editora Unesp, 2007.
HOBSBAWM, Eric J. A Era do Capital (1848-1875). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.
LENIN, Vladmir I. Em memória da Comuna. Rabochaya Gazeta, n. 4-5, 15 de abril de
1911. Disponível em: https://blogdaboitempo.com.br/2017/09/07/lenin-em-memoria-dacomuna/
LOUISE MICHEL. La Commune Histoire et souvenirs. Paris : La Découverte & Syros,
1999.
MACIEL, David. Comuna de Paris e emancipação dos trabalhadores. In: PINHEIRO,
Milton (org.). 140 anos da Comuna de Paris. São Paulo: Outras Expressões, 2011.
MARX, Karl. A Guerra Civil na França (parte III). São Paulo: Boitempo Editorial, 2011.
WILLIAM SERMAN. La Commune de Paris (1871). Paris : Fayard, 1986.
This Post Has 0 Comments