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por Cristian de Paula Sales Moreira Junior, especial para o LiceuOnline.

Para Fanon, as principais problemáticas do homem para com o homem podem ser resumidas e generalizadas na seguinte questão: As minhas ações no mundo contribuem para a valorização ou para a desvalorização da realidade humana? Para responder a isto, recorre ao exemplo do norte-africano que se encontra vivendo em França, onde os apelidos racistas dissimulam a realidade social, e para o conflito complexo existente entre africanos e antilhanos. Para os negros, o que existia era uma teoria da inumanidade.

Bernardino-Costa (2016) demonstra que o colonialismo, mediante o racismo, produz uma divisão maniqueísta do mundo entre a zona do ser e a zona do não-ser. Neste quadro, os sujeitos coloniais, em geral, e os negros, em particular, habitam a zona do não-ser e, por isso, são invisibilizados pelo olhar imperial.

A primeira tese de Fanon, apresentada sob a forma de artigo à revista Esprit em fevereiro de 1952, é que os profissionais da medicina franceses desvalorizam e agem com desconfiança quando se deparam com os problemas físicos e mentais dos norte-africanos.  Existia entre aqueles médicos o pensamento comum e generalizado de que, por motivos diversos, incluindo aí até mesmo a preguiça de trabalhar, os negros africanos fingiam ou exageravam ao procurar ajuda profissional “Zona do ser e zona do não-ser é uma divisão maniqueísta imposta pelo colonialismo. Embora o olhar imperial queira produzir cada uma dessas zonas como homogêneas, para Fanon nenhuma delas é homogênea. Entre os não-seres, inferiorizados pela cultura imperial, há uma outra divisão: entre sub-humanos e não-humanos. O antilhano é um sub-humano, que luta por ser reconhecido pelo ser superior, habitante da zona do ser. Mas o antilhano também produz um não-ser inferior a ele, o africano. O primeiro ficará envergonhado quando confundido com senegaleses, por exemplo” (BERNARDINO-COSTA, 2016, p. 5). Não eram levados a sério, seus tratamentos eram feitos de qualquer jeito e eram, na maioria das vezes, tratados pela probabilidade. Diziam que lhe doíam tudo e não algo em específico. E, talvez por não compartilharem da mesma cultura e linguagem ocidental que pensa e define todas as coisas a partir de conceitos e categorias — em última estância, palavras —, não conseguiam expressar seus problemas e sintomas.

Havia, de fato, uma dificuldade de comunicação. Algumas vezes era necessário um tradutor, embora este não conseguisse transmitir todos os sentimentos (e nem mesmo todas as palavras) envolvidos na explicação da dor do negro, o que gerava novamente diagnósticos e terapêuticas aproximativas. Para Fanon, os médicos não enxergavam a verdadeira realidade: os negros não estão fingindo ou sendo exagerados. Realmente lhes doem tudo. E doem por causa da colonização. O negro, na perspectiva que se defende na teoria do autor, é a sua própria dor, e consegue muito bem entender que não é corretamente tratado pelo fato de ser negro.

Dizia-se que a dor do norte-africano era vaga, não possuindo realidade consistente ou objetiva, porque não se encontrava nela uma “base lesional”. Para o pensamento médico da época, em alguma medida presente até os dias de hoje, toda e qualquer dor se manifesta porque existe uma lesão. Como não conseguiam encontrá-la fisicamente, achavam que a dor do negro era irreal. Isto além do fato de que os médicos já enxergavam os negros preconceituosamente como aqueles que não afeitos ao trabalho, que vão à clínica para conseguir dispensa ou para arrumar subterfúgios que lhes possibilitem faltar ao trabalho ou mesmo não trabalhar.

Neste sentido, os médicos os tinham como mentirosos, vadios, preguiçosos e ladrões. É como se o Norte-africano, simplesmente mesmo por o ser, se encaixasse categoricamente dentro de um quadro já preexistente e definido. Era uma natureza estabelecida pelo europeu. Tendo esta ideia à priori, antes da experiência, o seu exame e trabalho clínico ficavam comprometidos. Para Fanon, a base dessa dor, porém, existia e era real, mesmo que não fosse lesional: é a colonização. Os médicos são levados, segundo Fanon, a desconfiar dos sintomas por que essa nova base, apresentada por ele, era, até então, irreconhecível. Os médicos franceses resumiram todo este problema complexo em “Síndrome do Norte-Africano”. Como estes possuíam os sintomas, mas aqueles não encontravam a lesão, tratava-os como pseudodoentes com pseudopatologias. Que “todo árabe é um doente imaginário” e que “eles são farsantes” (FANON, 1980, p. 12) era quase como senso comum.

Essa tal “Síndrome” não era experimentada empiricamente pelos jovens médicos ou estudantes de medicina da época de Fanon, mas estes já à conheciam como uma tradição oral. Os Norte-africanos, porém, possuíam todas as condições que tornam um homem doente: “sem família, sem amor, sem relações humanas, sem comunhão com a coletividade” (FANON, 1980, p. 17), esgotando-se, assim, sem vida, corpo a corpo com a morte.

Grande problema, também, era o fato de que este tipo de preconceito exercido contra os Norte-africanos não era exclusividade dos franceses ou brancos. Muitas vezes, o inimigo do negro era seu próprio congénere. Expressões como “negro” ou “povo negro”, segundo o pensamento do autor, não podem ser encaradas como uma unidade integralmente organizada, mas como uma entidade, isto é, muitos grupos e movimentos diferentes. Havia, neste sentido, uma oposição, que Fanon tenta, através de sua ideologia, dissolver, entre Antilhanos e Africanos. Por estarem mais próximos, geograficamente e culturalmente (tendo em vista que eram, neste momento, muito assimilados e alienados à cultura europeia) da Europa, os Antilhanos se consideravam superiores, em todos os sentidos, essencial e materialmente, aos Africanos. Eram “afrancesados”, nas palavras do autor para referir-se à condição de “assimilado ao metropolitano”.

Fanon chega a demonstrar como em Martinica não existia, até aquele momento, cor, mas sim classe, como diferenciação social. O negro operário estará ao lado do mulato e do branco operários contra o negro burguês. Isso para mostrar que as histórias raciais são apenas uma superestrutura, uma invenção ideológica, que nega uma realidade econômica. Ou seja, existia com os negros das Antilhas uma falta de tomada de consciência da sua negritude até, mais ou menos, o final de Segunda Guerra Mundial.  Antes da guerra, falava-se comumente entre os antilhanos de ir-se à França para “turistar”, e à África para trabalhar (FANON, 1980, p. 50).

Os próprios negros antilhanos assumiam o discurso que caracterizava os africanos como “selvagens” e “bárbaros”, ou seja, se apropriavam deste irredutível sentimento de superioridade. Na concepção deles, assimilados, o africano é negro, e o antilhano é um quase-europeu, quase-metropolitano. Ser negro não significava a cor, mas a condição. Em suma, negro era só quem habitava a África. A “negritude” só era assumida diante de um branco. Essa posição do Antilhano era confirmada pelos europeus quando, por exemplo, os antilhanos voluntários ao exército serviam em unidades europeias e os africanos em unidades indígenas. Bernardino-Costa (2016, p. 3) levanta que “ao se deparar com o racismo, o negro introjeta um complexo de inferioridade e inicia um processo de auto-ilusão, buscando falar, pensar e agir como branco, até o dia em que se depara novamente com o olhar fixador do branco. Neste momento, as máscaras brancas caem”.

A própria linguagem surge como um dos instrumentos marcados pela tentativa de passagem do negro de não-ser a ser, dentro do quadro geral do colonialismo. À medida que adota a língua francesa para se aproximar dos brancos e se afastar dos negros, o martinicano se sente mais próximo da existência (BERNARDINO-COSTA, 2016, p. 4). Isto porque a “Linguagem não se refere somente à língua enquanto mero instrumento de comunicação, senão a uma instituição social permeada pelos valores de uma cultura” (BERNARDINO-COSTA, 2016, p. 4). Fanon, como antilhano, sofreu também, em sua experiência pessoal, esta imposição cultural. Foi devolvido à zona do não-ser após sua participação na segunda guerra mundial, quando estudou psiquiatria em Lyon.

Neste contexto de conflito existencial entre antilhanos e africanos surge Aimé Cesáire, poeta, intelectual e político da negritude na Martinica. Este personagem histórico surge após dois séculos em que esta perspectiva cultural europeia, ou seja, a chamada “verdade branca”, era a única possível, estabelecida nas mentalidades de maneira objetiva e concreta, e se propõe a combatê-la. Esperava-se, ainda mais de um professor diplomado, que compreendesse que ser negro era uma infelicidade. Ele, porém, foi o primeiro a dizer ser belo o negro, o que gerou muito escândalo.

Com a derrota Francesa para a ocupação alemã, “o antilhano vê o assassínio do pai” (FANON, 1980, p. 26). Esta derrota histórica ocasiona uma migração em massa de franceses para as Antilhas, gerando uma superpopulação de brancos onde anteriormente existia apenas dois mil, e uma crise econômica e de alojamento como nunca vista. Este fenômeno permitiu com que o europeu impusesse mais ferozmente seu racismo, e com que os martinicanos tornassem os próprios europeus culpados pela crise. Esta foi, segundo Fanon, a primeira experiência metafísica em que o negro das Antilhas assume uma oposição de rejeição ao branco europeu. Essa experiência, porém, toma novos rumos quando De Gaulle, até então general do exército francês com muita influência, acusa os militares franceses de terem-se entregado ou vendido. Os antilhanos passam a acreditar que a França só perdeu a guerra por causa desses traidores, que agora se encontram escondidos nas Antilhas. Esses racistas, com quem tem muito contato agora os antilhanos, foram tidos como a França “má”, e não a verdadeira França. Caíram no erro de achar que a “verdadeira França” não era racista.

Depois da Segunda Guerra o Antilhano muda, então, seus valores. Descobre-se como negro, lança seus olhares para a África e faz lembrar a todo momento que é realmente negro, ao contrário de antes de 1939 quando fazia lembrar a todo momento que não o era. Sentiram-se, quando em África, agora, infelizes por não serem “suficientemente pretos”. Cesáire, neste novo contexto, passa a ter apoio na luta contra esses europeus racistas que passaram a ocupar as Antilhas. O antilhano passa, perante estes, e sob a assistência teórica de Cesáire, a defender sua cor, a do negro real, no negro absoluto e a sua cultura e tradições passam a ser valorizadas, o que significa uma mudança de postura radical. Essa primeira experiência metafísica, mencionada aqui anteriormente, foi acompanhada de sua primeira manifestação de consciência política, devido à sistematização de manifestações proletárias nas Antilhas. Enquanto isso, na África, tudo continuava igual: os africanos viam os europeus e os antilhanos como a mesma coisa: exploradores e causadores de fome. Isto gera, segundo Fanon, a segunda experiência metafísica dos antilhanos: o drama de não serem brancos (reconhecidos pelos europeus) nem negros (reconhecidos pelos africanos). Estavam entre o “erro branco” e a “miragem negra”. Nas palavras de Fanon, o africano se vingava, e o antilhano pagava o preço. Isto porque o que foi enfrentado pelos negros africanos foi muito mais forte do que o enfrentado pelos negros antilhanos: era desumanizante e não havia brechas. Mesmo assim, Fanon defendia que os negros se identificassem como unidade.

 

 

 

* Este texto é uma reprodução de um trecho do artigo “A revolução africana: uma teoria do imperialismo em Frantz Fanon”, publicado na revista acadêmica Temporalidades da UFMG. O artigo original está disponível aqui.

Sobre o(a) Autor(a)

Cristian de Paula Sales Moreira Junior

Doutorando em História pela UFG.
Publicado no Liceu Online por:

Edição - Liceu Online

Revista online de Humanidades. @liceuonline

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