Introdução:
No presente texto procuro realizar uma introdução à tragédia grega tendo como chave de leitura e interpretação o sentido da política na Grécia antiga e de que forma a própria tragédia se configura como arte política e instituição social da pólis clássica – Atenas.
A questão da política:
Começo com uma reflexão sobre a política na Grécia antiga. Reconheço que se trata de tema sensivelmente complexo. Com efeito, quero apontar aqueles elementos que uma vez chamados à baila podem contribuir no desenvolvimento da exposição sobre o político na tragédia grega. Uma afirmação: a política é criação grega. Nada original de minha parte, é verdade. Mas que ainda pode fazer ressoar uma reflexão profícua sobre a temática. Com os gregos, o próprio conceito de política nasceu, na fórmula τὰ πολιτικά (tà politika), resultado de um longo e acidentado processo histórico, que finca suas raízes na crise e desagregação da formação social palaciana micênica. A decomposição do mundo creto-micênico foi sintetizada por Jean-Pierre Vernant da seguinte forma:
(…) é um tipo de realeza que se encontra para sempre destruída, toda uma forma de vida social, centralizada em torno do palácio, que é definitivamente abolida, um personagem, o Rei divino, que desaparece do horizonte grego. A derrocada do sistema micênico ultrapassa largamente, em suas consequências, o domínio da história política e social. Ela repercute no próprio homem grego: modifica largamente seu universo espiritual, transforma algumas de suas atitudes psicológicas (VERNANT, 2013, p. 10).
Acrise de autoridade que Vernant anuncia se prolonga nos séculos subsequentes. É entre as camadas aristocráticas que emerge conceitos como ἰσονομία (isonomía)e ἰσοκρατία (isokratía), no sentido de buscar definir um governo de iguais, embora iguais aristocráticos. Ao longo dos séculos VII e VI AEChá um processo de alargamento das estruturas políticas que abarcam as camadas mais populares. A emergência do pensamento isonômico e da prática política reconfigura de forma sensível a própria noção de humano, de universo e de cidade. A política demarca a ruptura com a organização arcaica e mítica do cosmo humano no pensamento grego, visão fundamentada no μῦθος (mûthos). Forma de pensamento em que a autoridade do argumento está ligada ao plano divino, portanto, incontestável (DETIENNE, 1988, p. 47). Tendo a Atenas clássica como paradigma, percebe-se que as relações sociais, no campo político, são mediadas pelo λόγος (lógos), no sentido de palavra-política, palavra-diálogo. Para Christian Meier essa reflexão faz emergir o campo político como um espaço fundamentalmente humano (MEIER, 1990, p. 2).
Se a política é invenção de novas formas de conceber o humano e a organização social, a discussão que se instaurou no interior desse pensamento diz respeito a dois conceitos básicos da reflexão política. Refiro-me às noções de autoridade – ἀρχή (arkhḗ)– e poder – κράτος (krátos). Há em Heródoto momentos interessantes: relata que em Cirene no ano de 550 AEC o poder foi posto ao meio, à igual distância dos cidadãos (HERÓDOTO, Histórias, IV, 161). Também apresenta a situação de Cadmos em Cós no começo do V século AEC. Nessa pólis Cadmos colocou o poder diante dos cidadãos para que ninguém se apropriasse de forma injusta (HERÓDOTO, Histórias, VII, 164). O mesmo se vê na narrativa sobre Maiândro, que ao herdar o poder das mãos do tirano Polícrates da cidade de Samos também o dispõe no centro. Assim fundando na cidade o poder isonômico e a liberdade (HERÓDOTO, Histórias, III, 142).
Nas três narrativas herodotianas é possível perceber um elemento comum. Há sempre a imagem mental do centro, do meio e de uma simetria geométrica. Isso faz parte de uma mentalidade que emerge com a criação da política. Tudo que dizia respeito à pólis era posto segundo as fórmulas gregas ἐς τὸ χοινόν (es tò khoinón) e ἐς τὸ μέσον (es tò méson). Respectivamente, “ao comum/público” e “ao meio”. Revela-se uma radical transformação nas mentalidades. A política e a prática isonômica, são construídas a partir de uma ruptura com o passado mítico-aristocrático onde as relações de parentesco organizavam e consolidavam a própria noção de autoridade e exercício do poder.
É também em Heródoto que se encontra um dos mais perspicazes debates políticos da antiguidade clássica. No Livro III, parágrafos 80-82 há um debate entre três persas – Otanes, Megabises e Dario. Heródoto, escrevendo no V século AEC, situa a discussão na metade do VI século AEC, uma contenda sem dúvidas fictícia – mas isso não importa. Otanes faz a apologia da democracia, Megabises é escudeiro da aristocracia e Dario toma parte da monarquia. Não entroem mais detalhes. Trago o exemplo para mostrar que um século antes de Platão e Aristóteleshá na Grécia clássica uma reflexão política fervilhante. Prática política, convívio isonômico e democracia, são três variáveis em cena, a partir delas há um intenso debate. A democracia inaugura uma reflexão que toma a participação, a escolha e a deliberação como móbiles principais. No interior do pensamento grego do século V AECnovas estruturas mentais estão sendo forjadas, configurando o que arrisco a dizer ser uma novaantropologia. Já no século IV AEC é Aristóteles que revela o resultado da construção mental, social e cultural que lhe antecedeu. Na conhecida fórmula πολιτικόν ζῷον (politikón zôion) – animal político – Aristóteles visa definir uma natureza humana (ARISTÓTELES, Política, Livro I, 1253a). É pensar o humano como propriamente um ser que delibera e vive em comunidade. A criação da política não é negação do que poderia se chamar de plano divino. Mas instituição de um espaço, ainda que relativo, propriamente humano. Como aponta Castoriadis, na concepção religiosa de além-vida dos gregos não há um paraíso, uma vida extraterrena a esperar. Isso libera o homem para agir e pensar neste mundo, no concreto (CASTORIADIS, 1987, p. 301). Mundo humano, logo criação humana.
Nem Atenas, nem qualquer outra pólis foram algum tipo de Édenonde harmoniosamente viviam humanos desconhecedores do pecado original. A política é eterna disputa em um universo tensionado. Pierre Vidal-Naquet no prefácio que escreve à obra Os Mestres da Verdade na Grécia Arcaica (1988), de Marcel Detienne diz que, a crise da palavra-eficaz, doμῦθος (mûthos), abre no contexto da pólis um espaço de constitutiva ambiguidade da ação, fazendo com que na cidade seja elaborada a palavra-diálogo. Quem fala diálogo, fala em enfrentamento político. A ação e a deliberação tornam-se ambíguas.E é nesse olho de furação que a tragédia emerge, e não como algo aparte, mas justamente como instância da política.
Tragédia e pólis:
A tragédia é produto da pólis, e nela desempenha uma função social. Sobre a questão da política na tragédia, Diego Lanza diz, “o teatro ateniense se situa no espaço político da cidade e sua linguagem é linguagem política” (LANZA, 1997, p. 32). Com isso o autor não está propriamente preocupado em afirmar que a tragédia reflete de forma mecânica os acontecimentos históricos e políticos da pólis. Nesse sentido, Mario Vegetti sobre a tragédia afirma que ela:
Representa a cidade diante de si mesma, no seu saber, partilhado, nas suas exigências morais, nas suas crises e nas suas contradições. Desse modo, o teatro possui dupla ação simultânea: interpreta a cidade e ao mesmo tempo educa e forma o cidadão militante, põe-no em condição de pensar, compreender, controlar os problemas que a prática social e seu horizonte ideológico lhe põem cada dia no momento da decisão e da reflexão (VEGETTI, 2014, p. 71).
A pólis clássica na medida em que se materializa, instaura em seu espaço físico e mental uma série de instituições que lhe são funcionais. Ou seja, responsáveis pela manutenção e debate da própria cidade. A tragédia grega é instituição da pólis (VERNANT; VIDAL-NAQUET, 2013, p. 23). Possui uma funcionalidade muito específica, colocar sob escrutínio as estruturas da cidade diante dela mesma (VILLACÈQUE, 2013, p. 23). A institucionalização da tragédia se faz através de sua inserção direta nos eventos públicos da pólis (LANZA, 1997, p. 24) Conforme aponta Christian Meier, a tragédia é arte política no sentido de que se instituíra inserida em um movimento cultural que fomentava o processo de construção da democracia em Atenas (MEIER, 1991, p. 270). Toda organização da cidade para encenar a tragédia, a postura do cidadão como público, e a presença constante de um vocabulário político nos textos permite estabelecer uma relação orgânica entre tragédia e contexto político, social e cultural (SEGAL, 1994, p. 194). Nesta perspectiva, ao drama caberia ser uma forma de expressão política.
Contudo, designar o fenômeno trágico como arte política, não é o mesmo que lhe postular uma função panfletária, mas sim, a tragédia é o espaço no qual a cidade elabora-se diante de si mesma. Essa elaboração como comunidade política, se dá a partir daquilo que aponta Francisco Marshall: “a representação trágica mimetiza memórias, possibilidades e tensões características da história cultural grega” (MARSHALL, 2007, p. 50). A tragédia, assim, é uma abertura na experiência políade a fim de levar a cidade a refletir sobre aquilo “o que está em conflito com seus ideais, sobre o que deve excluir, ou reprimir, sobre o que teme ou considera estranho, desconhecido” (SEGAL, 1994, p. 194).
Pierre Vidal-Naquet chama a tragédia de espelho quebrado (VIDAL-NAQUET, 2002, p. 24). Ou seja, as rachaduras de um espelho quebrado refletem a realidade, mas reflete de modo fraturado. Melhor, apresenta as próprias fraturas que são constituintes do real. O que se vê no interior dos textos trágicos é de um lado os valores de um passado mítico-aristocrático, e de outro já valores da cidade democrática isonômica. Isso leva a uma tensão entre dois universos conceituais e valorativos tão distintos e pesados.
Em Antígone de Sófocles é possível captar que o conceito de autoridade – ἀρχή (arkhḗ) – surge com diferentes pesos e significados na boca de diferentes personagens. No universo semântico da própria Antígone seu argumento e sua ação se fundamentam em um tipo de autoridade que evoca o arcaísmo mítico, as relações de parentesco pré e ao mesmo tempo anti-política. A filha irmã de Édipo é o passado da pólis. Por sua vez, em Creon, tirano de Tebas todo poder e autoridade se concentram nele mesmo. Creon vê a si mesmo como expressão da própria cidade, da própria lei e ideia de justiça. Ele incorre no que os gregos chamavam ὕβρις (húbris) – desmedida, insolência. Uma falta mortal ao olhar grego, já que a ὕβρις (húbris) é o engodo da crença na autossuficiência. Ora num mundo em que a vida individual – enquanto cidadãos – só tem sentido pelo referencial do outro, também cidadão, tal comportamento é desagregador. Fica com Hemon, filho de Creon, mostrar que o poder e autoridade não pertence a um único, muito menos que a cidade poderia ser assim personalizada.
Hemon: não insistas muito
na ideia de que mais ninguém conhece
o certo, pois quem imagina ser
ser o dono da razão, ter língua e ânima
acima dos demais, quando o examinam,
acham o quê? Vazio!
(SÓFOCLES, Antígone, vv. 704-709).
No texto grego para referenciar Creon como dono da razão tem-se φρονεῖν μόνος (phoneîn mónos). Do ponto de vista da política antiga, Creon é seu polo oposto. Seu tipo de autoridade é tributário da figura dos tiranos, algo que deve ser eliminado para que o convívio isonômico tenha lugar. Por seu turno, Hemon parece ventilar o ponto de vista da cidade democrática clássica. Construindo outro ponto de referência, aquele ao qual chamo de identidade política, onde poder e autoridade surgem despersonalizados e dessacralizados.
É semelhante ao que aparece em As Suplicantes de Ésquilo. As Suplicantes em sua fuga de uma união matrimonial não desejada pedem asilo ao rei Pelasgo. E assim se referem sobre a questão do poder político:
Coro: Tu és a cidade, tu és população.
Por seres prítane não sujeito a juiz,
és senhor do altar, lareira da terra,
com teus nutos de solitário voto.
No trono de solitário cetro, tens todo poder necessário
(ÉSQUILO, As Suplicantes, vv. 370-375).
Encontra-se aqui uma linguagem de tipo arcaizante visando evocar e estabelecer a imagem do rei mítico-arcaico, aquele que é dispensador da ordem cósmica sendo rei de justiça. Negação da política tal qual os gregos conceberam, espaço de disputa é verdade, mas de deliberação de argumentos e contra-argumentos. Alguns versos adiante Pelasgo ao considerar o pedido diz nos seguintes termos, “sem o povo não cumpriria” (ÉSQUILO, As Suplicantes, vv. 398). O povo – δῆμος (dêmos) – aparece como coletivo político dotado de capacidade deliberativa. Pelasgo opera no diapasão isonômico da cidade democrática. De um lado, as Danaides articulando o universo arcaico e seus valores míticos aristocráticos, de outro a figura de um rei, mas que põe em cena as bases de um pensamento democrático.
Nos dois exemplos o que se tem é uma tensão semântica, mas também simbólica e social. A tragédia opera com complexos de representações da vida social que entram em níveis de conflito. O trágico se apresenta como encruzilhada, um momento de suspensão do tempo vivido pela pólis, e assim apresenta e discute a pólis para si mesma, uma vez que os cidadãos-espectadores se encontram no teatro de Dioniso a partir de sua natureza cidadã.
Aponta Christian Meier que a função social da tragédia se apresenta ao:
(…) recolocar, sem cessar, o novo dentro do antigo, pensar o novo unindo-o a antigo, e, assim, fazendo, preservar vivar as velhas interrogações, os panos sombrios da realidade, fazendo-os entrar, sob uma nova forma, no mundo novo; logo, de prover a formação deste saber ao qual o ser humano costuma se referir, melhor dito, de prover a base mental do político: a tragédia revivendo, regenerando e desenvolvendo o fundamento ético da política (MEIER, 1991, p. 57).
O arcaísmo evocado diz respeito aos valores pré-políticos dos laços de parentesco, que a pólis precisou submeter ao rigor de uma crítica fundacional, mas que não poderia eliminá-los por completo. Mas sim depurá-los por via de variáveis referentes ao universo isonômico que se institui quando da emergência da política e democracia. É aqui que para mim a tragédia assume também uma posição paideutica – educacional – mas não em algum sentido formal de educação, e muito menos alguma fórmula panfletária como havia já dito, e sim como projeção reflexiva sobre o real. O que isso significa? A tragédia reorganiza e ressignifica experiências dando sentido ao mundo que se constrói entre práticas e representações, entre encruzilhadas de tempos que se interseccionam onde a construção do novo depende do rearranjo daquilo que foi. No caso da tragédia é uma nova configuração do campo ético e político uma vez que é sobre a experiência humana em coletividade que se discute. Como coloca Wilhelm Nestle em seu História do Espírito Grego, a tragédia em algum sentido é o olhar do cidadão ao mito, pois o trágico não apresenta o humano em sua dimensão individualizada, mas antes, como membro de uma comunidade, da pólis (NESTLE, 1981, p. 92).
Em suma, a tragédia grega é espaço de construção da identidade política não porque diz o que fazer. Não se trata de uma cartilha partidária. Mas apresenta em seu universo de emergência – o isonômico – as tensões que permeiam os conceitos fundamentais de uma reflexão ética e política, como por exemplo, autoridade e poder. Ao ser produzida para ser encenada e sendo organicamente constitutiva do calendário cívico-religioso da pólis, a tragédia “cria um espirito comunitário” (SEGAL, 1994, p. 195). Identidade política, não interioridade ou mesmo subjetividade em um sentido moderno pós-psicanalítico. Aqui, na tragédia, trata-se de uma identidade que é construída a partir de uma ideia de “eu” que só se revela em suas potencialidades a partir de sua inserção no universo políade isonômico onde a ação e seu peso são medidos pelo diapasão do espaço público.
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