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por Isabela Padilha Papke, especial para o LiceuOnline.

Maria José Silveira é uma mulher que nasceu na cidade de Goiânia, mudou-se para Brasília e formou-se na faculdade de comunicação na UNB (Universidade de Brasília). Em 1969, mudou-se para são Paulo, trabalhando como redatora publicitária. Foi perseguida pela ditadura militar, que a acusou de subversão, em 1971. Viveu de modo clandestino, até 1973, com seu marido, quando se exilaram no Peru. Durante o exílio, estudou antropologia na Universidade Nacional Maior de São Marcos e, quando voltou para o Brasil, em 1976, estudou ciências políticas na Universidade de São Paulo (USP). Estreou no mundo literário com o romance A mãe, da mãe, da sua mãe e suas filhas (2013), seguido de cinco títulos, entre eles Pauliceia de mil dentes (2013), bem como possui algumas obras de cunho infanto-juvenil também.

Para o texto de hoje, escolhemos um conto, Felizes Pouco, que fora selecionado para integrar a coletânea, Nos idos de Março (2014), organizada, pelo escritor Luiz Ruffato. E, esse texto, é um convite a refletir um pouco sobre os encontros entre a memória e a ficção dentro da literatura de Maria José Silveira. Comecemos nossa saga então.

O conto Felizes Pouco é narrado é primeira pessoa, como quem observa os fatos de um cotidiano de uma vida de alguém que conhece de perto. A narrativa aborda a história de duas amigas, Mara e Clarice, que trabalham numa redação, em São Paulo, com o foco narrativo centrando-se em Mara, em grande parte do texto. De modo intimista e subjetivo, o objetivo primeiro, é mostrar um acontecimento na vida de Mara, do qual não temos ideia no princípio. O texto, que se inicia em primeira pessoa, passa a se dar em terceira, quando começa a narrar a vida das personagens.

O primeiro destoante na narrativa de Mara, é sua missão de entregar panfletos políticos contra ditadura vigente no país e, principalmente, aos decretos de Garrastazu Médici, que estava em vigência no governo, na época do relato. Mara temia a ação, por saber do perigo iminente e, porque sabia que, por não ser mais estudante, seria presa, como se fosse membro de uma guerrilha urbana e, estava cansada, de ter que temer tudo isso.

A narrativa nos entrega, sutilmente, uma descrição da vida de Mara, de modo, a nos fazer observar que, ela, era um alguém como qualquer outro, que possuía uma vida como a de qualquer outro, e que só queria poder ter liberdade política e intelectual, viver sem medo de ser perseguida. No fim das contas, ela se reúne, com o pessoal da panfletagem, tudo dá certo, ela até entrega um panfleto para Clarice, quando a vê novamente no trabalho. Clarice, elogia o casaco de Mara e pede para que troquem de casaco até na segunda, pois adorou a vestimenta e Mara topa, após isso, se despedem, na sexta, na esperança de se reencontrarem na segunda.

Neste meio tempo, não sabemos mais de Clarice, temos detalhes apenas da vida de Mara, suas leituras, usa inquietação com o que era a felicidade, pelos questionamentos de Nietzche, seus trajetos, inserções substanciais de notícias do governo, mediante as leituras de jornais entre um metrô e outro. Vemos cada vez mais que a personagem do conto, tem num cotidiano um ato quanto normal.  A única coisa que difere Mara de muitos, é sua posição política contra o governo.

Mara é militante de uma organização clandestina, ao mesmo tempo que é repórter em um jornal burguês de São Paulo. Podemos perceber que, tecnicamente, ela leva uma vida dupla, como a própria narração sugere. A vida dupla de Mara é necessária para que sua identidade clandestina não seja descoberta, afinal, o marido de Mara, Alfredo é um profissional da organização, que se dedica apenas a isso. Então, ela tem que ter o emprego, para ajudar a organização e ajudar o marido e proteger ambos, pois é essa contradição que afasta as suspeitas da polícia de ambos serem militantes.

A rotina é exaustiva, o próprio conto nos questiona “Em que momento ela decidiu participar de tudo isso?” (posição 2358) e nos diz que na faculdade, quando ela pensava em respostas para entender o mundo coletivo e individual, que via prazer nesse pensamento, nessa importância, de estar agente, seja nas conversas que teve, nos livros que leu, nos filmes que assistiu, “ela é parte de um tempo em ebulição, de transformações em processo” (posição 2364) e o seu país, Brasil, era impedido de viver esse tempo pela ditadura.

Mara sente uma espécie de reação quase física só de pensar nessa palavra: ditadura. A palavra mais repulsiva da língua portuguesa. Mara é romântica, está se vendo. É romântica naquele sentido preciso do indivíduo que acha possível ir além das condições colocadas pelo momento em que vive, que acredita ser da natureza humana não aceitar o que lhe é imposto, e ter o impulso de ir adiante, superar isso, transcender. É romântica assim, é dessa estirpe. (posição 2366)

Após entendermos mais Mara, enquanto ser humano, voltamos a descobrir mais detalhes de sua rotina, seu apartamento, o como era simples e padronizado, sem decorações, para mão chamar a atenção por ser ponto de encontro e abrigo da organização clandestina que Mara participava.

Por esse motivo, também os livros de Marx, Engels, Lênin, Mao, Sérgio Buarque, Caio Prado, tinham que ficar escondidos. Aparentes, só os romances, e mesmo assim nem todos. (…)No fundo do armário do quarto, e debaixo da cama, os documentos da organização e os livros dos autores de esquerda. Em cima, em uma caixa branca de sapato, as armas — dois .38, uma pistola 765 e alguma munição. (posição 2376-2382)

Depois de detalhar os itens da vida dupla, temos mais do cotidiano de Mara. A narrativa menciona que, um belo dia, Alfredo, seu marido, trouxe um companheiro para se abrigar em seu apartamento. Mara não o conhecia, apenas vira seu rosto, em cartazes no metrô, como sendo uma pessoa procurada pela polícia. O amigo de Alfredo, lhe pede que compre uma tinta, para que ele possa clarear o cabelo e disfarçar-se, e assim ela fez. E, depois, ainda cortou e pintou o cabelo para ele. Naquela noite de sexta feira, eles estão seguros no apartamento, o perigo é lá fora somente.

Alfredo, resolve descer no bar da esquina, para comprar-lhes um vinho. Retorna, e eles conversam, riem, e ouvem músicas, tudo parecia normal. No entanto, temos uma reviravolta na narrativa, o hóspede é preso e torturado pela polícia militar, após se encontrar, no ponto errado, ou não, porque a narrativa nos entrega o benefício da dúvida, com Mauro, outro membro da organização clandestina. Depois de alguns dias, todos da organização acabaram presos. Mara, inclusive, morrerá, junto de Alfredo, numa invasão da polícia, em seu apartamento, na mesma sexta que o hóspede faleceu.

Após isso, temos uma nova virada na narrativa, que volta a ser de primeira pessoa, pois descobrimos que, a narradora, era Clarice, amiga de Mara. “A contragosto me vejo obrigada a usar essa locução verbal da língua portuguesa em primeira pessoa, com sua feiura obscena.” (posição 2461). Que conta que, também, naquela sexta, fora torturada, mas que se sente incapaz de descrever o que sofreu.  Ela sempre que tenta dizer sobre o que sofreu quando tem tremores e que se considera com sorte por ter desmaiado no meio do processo.

É que a tortura divide a pessoa torturada em duas: põe seu corpo contra a sua cabeça. Usa seu corpo para que ela traia suas ideias, seus companheiros, sua crença. Dilacera a pessoa: de um lado, a cabeça pensante ameaçada, de outro, o corpo ferido com a dor. E essa pessoa, a vítima, pode tentar se curar depois, se emendar, se costurar, mas o remendo, a costura permanece. Não há como passar uma borracha e fingir que essa divisão nunca existiu. O remendo, para sempre, fica lá. (posição 2474-2480)

Antes de desmaiar, ela menciona que se lembra de encontraram, no casaco preto de Mara, que ela vestia, uma última prestação de uma geladeira paga e que, depois disso, para os militares encontrarem o endereço de Mara, foi muito fácil.  O fim do conto nos entrega um clímax de tensões, que eram estabelecidas, desde o começo, de detalhes que foram narrados pela necessidade de serem citados posteriormente. Clarice foi torturada por vestir o casaco de Mara e, Mara e seus companheiros, foram mortos, porque encontraram o apartamento dos dois, mediante a conta no casaco de Mara, que estava com Clarice. O fim é trágico, e a narrativa se encaminha para reflexão, de que, mesmo com tudo o que viveu, Clarice consegue afirmar que fora feliz, assim como sua amiga e seus companheiros.

Agora, que temos noção do enredo da narrativa, podemos iniciar nossas reflexões, de modo a compreendermos como podemos ler este conto, por entre os conceitos de memória e de ficção.  Wolfgang Iser (2002), em seu texto, Atos de fingir ou o que é fictício no texto ficcional, disse: “serão os textos ficcionados de fato tão ficcionais e os que assim não se dizem serão de fato isento de ficções?”. Talvez, essa pergunta, nos caia, aqui, como uma luva, para investigarmos a situação do conto.

Primeiramente, precisamos localizar o conto temporalmente. Felizes Pouco, é um conto escrito em 2014, mas que se passa em entre 1969 e 1974, é possível coletar essa informação mediante a narradora nos mencionar que os acontecimentos se passam durante o período ditatorial, no governo de Emílio Garrastazu Médici.   Essa localização temporal é interessante, à medida que lidamos com uma escrita ficcional de fatores que, historicamente, ocorreram em nosso país. Maurice Hallbwachs, em sua obra Memória Coletiva (2006), menciona que, a memória, é o passado reconstruído, reformulado com os dados do presente. Este processo se dá de forma seletiva, mediante a impossibilidade de registrar todos os fatos ocorridos num tempo datado. Deste modo, a visualização do passado se constitui mais de percepções do presente, do que de tentativas de reconstrução do passado, afinal, nossas visões do tempo são incompletas, por variarem mediante a nossa posição social.

A narração de Felizes Pouco se inicia em primeira pessoa, conversando, diretamente, com o leitor, de forma instigá-lo a ouvir uma história, sobre qual ele não sabe do que irá se tratar. Logo depois, temos a noção de que a narrativa se passará em terceira pessoa, em meio a ditadura do país e, narrando a vida de duas jovens (Mara e Clarice), mas centrando-se em uma (Mara). Apesar destas serem informações repetidas neste texto, iremos resgatá-las, a fim de esmiuçar o labirinto textual que é este conto.

Ao mencionar-se o governo Médici, para aqueles que já depreendem o que significa, cria-se uma certa expectativa no texto, de algum acontecimento trágico. Para aqueles que não sabem, Emílio Médici ficou conhecido como o governante mais impiedoso da ditadura militar brasileira, foi o responsável por criar os atos institucionais, que tornaram o período muito mais agressivo e opressor do que já era. Nesta época, inúmeras pessoas foram, mortas, torturadas em nosso país, de formas brutais, bem como mantidas em exílio em outros. Fora um período muito marcante, culturalmente, pela forte repressão. Figuras como Caetano Veloso, Gilberto Gil e Chico Buarque, foram presos e exilados. Inclusive, a narrativa até menciona algumas dessas figuras, como sendo parte do cotidiano de consumo cultural da personagem de Mara.

Podemos perceber que, de certa forma, a autora nos guia para a percepção social de que perspectiva estamos, mediante a ditadura, desde o início do texto, ao mencionar que eram tempos difíceis, complicados.  Um fator que também nos é caro, é o fato de a narrativa sair de primeira para ser de terceira pessoa, pois esse distanciamento, nos entrega a sensação de reconstrução do passado, que além de recuperar as ideias de Hallbwachs, recupera, também, também, Michel Pollak,  que, em seu texto, Memória, esquecimento e Silêncio (1989) menciona que, referenciar o passado, serve para manter uma coesão dos grupos sociais, definindo seu local e sua oposição.

O conto, nos sugere essa oposição, desta forma, temos, desde o princípio por muito além de temática, localizações linguísticas que nos permitem perceber a posição social do narrador do texto. Passamos a compreender, também, quando adentramos na figura de Mara, ao entendermos que ela fazia parte uma das organizações políticas clandestinas que iam contra o governo e que panfletava por ela. Temos o entendimento do perigo de suas ações, visto que, a ditadura, repudiava qualquer manifestação contrária ao governo vigente.

Começamos a suspeitar que, talvez, a narradora seja Mara, ou alguém muito próximo dela, por saber os detalhes de sua rotina, a descrição de sua casa, de cada segredo. Entendemos que, Clarice, apesar de apoiar Mara, e ser contra o governo, não era um membro da organização, mas apenas uma estudante de filosofia e colega de trabalho de Mara. Não temos detalhes de Clarice, apenas detalhes de Mara, Clarice passa a ser coadjuvante da narrativa.

Há a possibilidade de interpretar essa ação como uma proposta de esclarecer que por Mara ser a protagonista da história, seus atos são importantes e que, cada ação de seu cotidiano, é necessária para a interpretação e por isso o cuidado com elas. A leitura Nietzschiana de Mara sobre a felicidade, faz o título do texto. Seu apartamento padronizado, os livros ocultos no apartamento, a presença de armas, os panfletos, os encontros com a organização, o fato de ser casada com um dos membros mais importantes dela, revelam a vida dupla de Mara. Seu próprio emprego é moldado para acobertar sua vida militante.

E, apesar de tudo isso ser configurado, propositalmente, a vida dupla de Mara revela o ser humano que Mara era, o quanto em comum ela tinha e tem com muitas pessoas, e os motivos pelos quais ela lutava em sua militância por um mundo melhor.

É isso o que ela vê ali, todo final de tarde, no ônibus superlotado. No entanto, também vê outra coisa, talvez meio escondida entre tanta gente, mas, se olha bem, consegue ver no meio daqueles rostos outra coisa: um futuro. Algo que todos eles, exatamente como ela, têm o direito de ter. Um futuro bem diferente — e ela fará o que puder para que chegue o mais rápido possível. (posição 2358)

Mara se mostrava para o mundo como um ser humano convicto de seus ideais e apaixonado por eles, a narrativa a constrói deste modo. Não há como não nos interessarmos por Mara. Pela deixa do contexto histórico por trás de tudo, tememos cada passo de Mara, nos afligimos com ela e por ela, por ela ser uma militante em plena ditadura, no governo de Médici.

Já Clarice, não nos parece tão frágil e tão importante, não sabemos quase nada sobre ela. Tanto que quase passamos desapercebidos do perigo iminente que significava uma troca de roupas de ambas. Visto que, Mara, entregou panfletos e foi a reuniões militantes com o casaco que emprestou para a amiga, ambas não se atentam e nós leitores, muitas vezes, também não.

Por fim, esse feito, esse detalhe, esse cotidiano em meio a tensão que provoca o clímax de tudo. Não fora o militante procurado que Mara e seu marido Alfredo abrigaram em sua casa, que decretou o seu fim, mas sim uma troca de casacos, com algo mais cotidiano ainda inserido: uma conta recém paga, com seu endereço. Por conta desse ato cotidiano, banal, Mara, Alfredo e seus amigos foram mortos e torturados, e por conta, deste ato, Clarice foi torturada também.

Por conta de um ato que, para qualquer um pode passar insignificante, vidas foram extintas e chagas incuráveis foram impostas. E, na maior de todas as surpresas, no retorno da narração, em primeira pessoa, descobrimos que, nossa porta voz, era, na verdade, Clarice. Clarice que sobreviveu e que pode nos contar tudo, que era amiga de Mara e que sofreu essa coincidência, que não militava, mas era contra o governo. Que estava na hora errada, com a roupa errada, no momento errado, onde as mínimas coisas se tornam importantes.

Você pode até ler e discordar do que a narração diz, mas você não pode negar a aflição que sente junto ao personagem de Mara, o medo caliculado, que faz cada detalhe ser narrado, conscientemente, para mostrar que, qualquer um, qualquer um mesmo, na hora errada, no lugar errado, com uma roupa parecida ou igual a de alguém pode morrer ou ser torturado a qualquer instante.

Maria José Silveira, por meio de uma descrição exacerbada do cotidiano, cria uma narrativa de investigação, um ar de temor, afinal, para romances, uma descrição aviltada pode ser um caminho interessante para o realismo e, esse fator dar realismo nos deve ser considerado também. Mas, num conto tão pequeno, como Felizes Pouco, numa situação tão bem localizada historicamente, a descrição em excesso, é o reflexo de um alguém que nos ensina a ter cautela com cada detalhe, cada substância e que, por meio destes detalhes, nos conecta a um labirinto narrativo que, ainda assim, surpreende em seus destinos ficcionais.

Luíza Santana Chaves, em seu artigo Memória e Ficção em meio aos deslocamentos literários. (2014), menciona que

Entre os atos de fingir do texto ficcional estão a seleção, a combinação e auto indicação (o auto desnudamento da ficção). A seleção “possibilita apreender a intencionalidade do texto”, pois evidencia os elementos do real selecionados pelo autor e acolhidos pelo texto, em uma “ausência de regras” para isso. A combinação funciona como a revelação da “não-equivalência”, da diferença no semelhante, criando relacionamentos intratextuais: “como produto de um ato de fingir, o relacionamento é a configuração concreta de um imaginário”. A seleção e a combinação provocam “transgressões de limites entre texto e contexto” (CHAVES, 2014, p.71)

A ficção, para Chaves, possui um caráter transgressivo que evidencia elementos de indeterminação, o que causa conflitos na transposição da experiência “real” para o teor “ficcional”. A ficção coloca em evidência, experiências, mesmo que concretas, no campo da indeterminação. Talvez, esse seja o caso, do texto de Maria José Silveira, pois ao dar uma atenção a atos cotidianos, que, usualmente, não damos, nos leva tecer sentidos ficcionais para locais onde a ficção não mora. Nos coloca em lugar de indeterminação para coisas que nos são concretas, nos sensibiliza, assusta, nos agonia, de modo sutil.

Rememorando Iser, Luíza chaves menciona que, talvez, o homem necessite da ficção porque o jogo textual abre a literatura, os discursos para história, para a plasticidade humana, para o momento de irrealizar, realizando-se.  Real, fictício e imaginário, tornam-se, deste modo, instâncias que só podem captar-se no texto, contextualizadas. Se quisermos atravessar a ficção em Felizes Poucos, conseguiríamos, pois quem lê este texto, sabendo de quem é Maria José Silveira, já olha para ele diferente já se tem uma ideia que vem imanente. Já sabe que ela foi presa pelo governo da ditadura, em 1971, que se exilou, que morou em São Paulo, que foi redatora de um jornal e foi casada. Sem as minúcias linguísticas que mencionamos, a autora em si já nos entrega uma possibilidade de posicionamento no texto. Fazendo-nos perguntar, capciosamente, se essas memórias, não são memórias de Maria José, se ela é Clarice, se ela é Mara, se ela é um pouco de cada, dissolvido numa história disfarçada. Retornando a Chaves, veremos que:

A literatura pode, desta forma, colocar em evidência discursos muitas vezes marginalizados e não considerados pela História Oficial, levando-nos a tomar consciência de algo muitas vezes escamoteado pelo discurso do vencedor (do alerta benjaminiano) como forma de amenizar os horrores das ações humanas, a custa de todo um passado que ficou sem a redenção da denúncia, a possibilidade da rememoração, sendo silenciado pelo medo, pela censura. Assim, lembrando Iser, de certo modo, toda recepção possui a potencialidade de influenciar outras recepções e todo discurso está imerso numa rede de discursos anteriores. (CHAVES, 2014, p.73)

Quando a autora comenta que, a literatura, tem o poder de dar voz a discursos silenciados pelas História Oficial, temos uma possibilidade de investigação, visto que, no caso dos fatores do conto presente, muitas pessoas foram mortas e desaparecidas na ditadura como forma de silenciamento de vozes que se prostavam contra o governo, e, talvez, o conto destine-se a reerguer a memória daquelas que não puderam dizer. Ao mesmo tempo, que, como mencionado por Chaves, ele possa se atravessar do discurso pessoal de Maria José, ao passo que ela também fora silenciada, neste mesmo período, lhe ocasionando um exílio do país.

As linhas entre ficção e realidade, no texto de Maria José Silveira, são tênues. Mas, muito para além de qualquer uma dessas discussões, ele cumpre seu papel de elucidar, de evocar um período histórico, marcante, na vida de nós, brasileiros, e de nos fazer pensar na angústia que era viver aquele tempo, onde tudo era tênue, tão tênue que até o que se passa desapercebido podia gerar morte. Silveira da vida de angústia ao cotidiano, felicidade convicta ao posicionamento social e, voz aos que não puderam dizer, incluindo a si mesma. Esse passeio por sua narrativa revela que, efetivamente, sendo reais ou não, Mara e Clarice nos marcam e nos fazem lembrar dos muitos que se foram, e da oportunidade que, hoje, temos de dizer por eles. A terminar com Maria José Silveira, “Fomos vencidos? Quem vai saber. Só a vida dirá se, ao perder a batalha, perdemos nela a esperança e a alegria de ser quem fomos e quem somos. Esse bando de irmãos.”. E digo, com antecipação, que não foram vencidos, pois se fossem, hoje, não estaríamos aqui, lendo sobre vocês.

REFERÊNCIAS:

CHAVES, Luiza Santana. Memória e ficção: em meio aos deslocamentos literários in Em Tese, v. 20, n. 3, p. 66-79, 2014.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Ed. Centauro, 2006.

ISER, Wolfgang. Atos de fingir ou o que é fictício no texto ficcional. In: COSTA LIMA, Luiz. Teoria da literatura em suas fontes. 2. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 2002. Vol. II. pp. 955-987

POLLAK, Michael. Memória, Esquecimento, Silêncio.in Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 2, n. 3, 1989. . “Memória e identidade social”. Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 5, n. 10, 1992.

RUFFATO Luiz.  Nos idos de março (a ditadura militar na voz de 18 autores brasileiros). São Paulo: Geração editorial.,2014.

Sobre o(a) Autor(a)

Isabela Padilha Papke

É Doutoranda na área de Estudos Literários, na Linha de Pesquisa de Literatura, Sociedade e História da Literatura, no Programa de Pós Graduação em Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. É Mestra na área de Estudos Literários pela Universidade Estadual de Maringá (2019-2021) e é, também, licenciada em Letras Habilitação Única - Português e Literaturas correspondentes pela mesma Universidade (2018). É revisora na revista acadêmica História em Curso, do Curso de História da PUC-MINAS e membro do Grupo de Estudos em História e Literatura (GEHISLIT), também da PUC-MINAS e é, também, membro de Grupo de Estudos Literaturas e Ditaduras (GELD) da PUC-SP.
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