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por *Wallece José Silva Lima, especial para o LiceuOnline.

Há uma filosofia brasileira? É possível falar em uma filosofia feita genuinamente no Brasil? Essas perguntas moveram as breves e modestas considerações feitas abaixo e espero que as palavras que se seguem estejam à altura do caro leitor. Porém, antes de aprofundarmos nas questões supracitadas, afim bem colocarmos o status da questão, é necessário, mesmo que brevemente, estabelecer a relação entre Nação e Filosofia na história.

A formação dos Estados Nacionais, um dos marcos fundamentais do surgimento do período histórico denominado ‘’modernidade’’, ajudou a transformar a identidade cultural do Ocidente. Apartado da Igreja Católica, princípio medieval unificador e símbolo político-institucional da união entre as gentes que formou a Europa, o homem ocidental adquiriu um novo senso de orientação e uma nova forma de consciência: a constituição do Estado e da Nação como representantes e guias da cultura na qual o indivíduo estava inserido. Assim, o homem medieval que entendia a si mesmo como um esperançoso membro da Cidade de Deus, gradualmente deu espaço ao indivíduo inglês, francês, alemão etc.

Outro traço fundamental da transformação social citada, a filosofia mesma sofreu uma mudança no seu repertório de interesses e voltou-se a problemas específicos, tais como o processo subjetivo do conhecimento, a natureza social do homem, a finalidade do Estado etc. Mediante um processo gradual, essa nova prática filosófica – escrita em língua nacional – ajudou a formar os traços característicos de cada povo. Assim, o novo repertório de perguntas-problema e a consolidação do Estado e da Nação como guias culturais, fizeram da filosofia uma técnica idiossincrática responsável por expressar o volksgeist; surgia um modo francês de se fazer filosofia, um modo alemão, uma filosofia inglesa etc…

No mundo contemporâneo, após o horrível fenômeno das guerras mundiais, as novas dinâmicas globais ergueram-se contra o exacerbado nacionalismo moderno, diluindo o as identidades nacionais em padrões de comportamento globalizados. O francês, o brasileiro ou o inglês tornam-se gradualmente membros de uma comunidade global à medida em que as fronteiras entre as nações desaparecem e novos paradigmas desconstrucionistas surgem. As novas teorias contemporâneas nascem como uma tentativa de reconsiderar o trajeto histórico percorrido até aqui pelo homem ocidental. Porém, há um paradoxo muito próprio do mundo hodierno. Ao mesmo tempo em que se institui uma forma global de comportamento, o homem contemporâneo, abrindo mão da possibilidade de uma universalidade do Ser (objeto máximo da filosofia), faz do exercício do filosofar uma atividade cada vez mais regional; as filosofias alemã, inglesa ou francesa tornam-se áreas especializadas do pensamento pertencentes a dois grandes blocos: Analítica e Continental.

Contudo, o traço marcante da modernidade deixou sua marca indelével: continental ou analítica, a filosofia ainda parece apresentar-se como uma tradição europeia, que expressa o espírito europeu. Diante desse cenário, lanço uma pergunta: a filosofia é um produto limitado a expressar o espírito um povo? Em caso afirmativo, há alguma marca, alguma característica fundamental na história da filosofia no Brasil que nos permite reconhecer uma filosofia propriamente brasileira? uma filosofia brasileira?

Dentre vários autores que se debruçaram sobre essa problemática, tais como Jorge Jayme, Fernando Arruda Campos, Antônio Paim e Julio Cabrera, optamos por seguir a análise realizada por Stanislavs Ladusãns, S.J. A pergunta pelo status quaestionis da atividade filosófica no Brasil levou o filósofo lituano a organizar a obra ‘’Rumos da filosofia atual no Brasil em auto-retratos’’, um livro contendo ensaios autobiográficos de diversos filósofos brasileiros, os quais expuseram em linhas gerais seus itinerários filosóficos e existenciais. Colaboraram com o projeto diversos filósofos, como Leonard Van Acker, Miguel Reale, Henrique Cláudio de Lima Vaz, Mário Ferreira dos Santos, João Camilo de Oliveira Torres, dentre outros. Pertencente à corrente fenomenológica, pe. Ladusãns permitiu que a filosofia brasileira se apresentasse por si só. Ao final da obra, o filósofo deixou-nos um juízo acerca da problemática envolvendo a busca por um traço genuinamente brasileiro no exercício da filosofia. Ladusãns elencou três pontos característicos que distinguem a filosofia praticada no Brasil do pensamento filosófico de outras regiões do mundo, os quais citaremos a seguir.

Em primeiro lugar, embora o Brasil não tenha produzido um sistema filosófico totalmente original e sendo dependente de sistemas filosóficos tradicionais já consolidados, os filósofos brasileiros procuram estabelecer um diálogo entre a tradição filosófica e os problemas contemporâneos do país. Surge assim, as interpretações originais e até mesmo heterodoxas das tradições filosóficas ocidentais. Em segundo lugar, os filósofos brasileiros, utilizando-se de sistemas filosóficos consolidados na Europa e na América do Norte, possuem uma visão da dinâmica da filosofia por uma ótica, digamos, ‘’externa’’. Essa posição de observador nos permite desenvolver um ato crítico e criativo inovador em relação àquilo que se discute em outros países. Em terceiro lugar, o filósofo brasileiro possui uma visão mais humanista e pluridimensional das questões filosóficas. Essa visão provém, dentre vários fatores, da consciência dos problemas sociais, culturais e econômicos do Brasil; o filósofo brasileiro, de modo geral, não faz uma filosofia tomada à parte dos problemas reais do país. Assim, para Ladusãns, não existe um sistema filosófico brasileiro, mas uma forma genuinamente brasileira de interpretar a filosofia.

Se o caro leitor nos acompanha até aqui, arriscamos dar um passo além nos tópicos elencados por Ladusãns. Os pontos que caracterizam a forma brasileira de lidar com os problemas filosóficos, no fundo, talvez revelem uma crise na forma com que os homens modernos e, posteriormente, contemporâneos enxergam a filosofia. Desde a ruptura entre a modernidade e o mundo clássico – ruptura principalmente com as instituições que salvaguardaram o fio do Ser que conduziu a filosofia durante séculos -, o projeto inicial da Filosofia diluiu-se em problemas regionais até ser completamente esquecido. A ciência do ser enquanto ser e dos problemas referentes ao ser enquanto ser, que foi delineada por Sócrates, Platão e Aristóteles e consolidada por uma tradição que Leibniz denominou como filosofia perene é a ciência acerca das condições de possibilidades universais. Quer dizer, o ato do filosofar é um exercício do intelecto em busca da universalidade, daquilo que é, foi e sempre será. Daquilo que, como diria Mário Ferreira dos Santos, é herança comum da humanidade.

Enquanto problema metafísico, o ser é a possibilidade de existência de cada ente neste mundo. E, obviamente, é a existência do ser que possibilita o conhecimento humano, pois só há conhecimento daquilo que afirma uma presença. Enquanto as demais ciências se ocupam da significação da verdade no tempo, a filosofia preocupa-se com a condição universal da possibilidade de uma verdade. O exercício do filosofar, por ser um problema universal, não se enclausura em uma nação, sociedade, povo ou reino. A filosofia é serva do Ser.

Tendo em vista essa natureza da filosofia, creio não ser exagero afirmar que a atividade filosófica no Brasil – representada por seus maiores nomes, os quais pretendo expor em outras oportunidades –, ao manter a ligação com a tradição filosófica clássica, está mais ligada ao fio do ser da filosofia perene do que aparenta à primeira vista. Não há, portanto, uma filosofia nacional ou regional. O que há é o desafio de desenvolver um modo particular de lidar com problemas universais. E o Brasil deu-nos grandes filósofos à altura dessa tarefa.

Foto: “O filósofo”, de Lyubov Sergeyevna Popova (1889-1924). 

Sobre o(a) Autor(a)

*Wallece José Silva Lima

Professor de Filosofia da Rede Pública de Goiás. Gosto de filosofia brasileira, metafísica, cosmologia e tudo o mais que soe esquecido ou abandonado.
Publicado no Liceu Online por:

Comentários...

This Post Has 5 Comments

  1. Excelente texto, professor! Muito bom mesmo! Fiquei a pensar desde quando podemos falar em uma filosofia NO Brasil… na teoria da dependência, Teotônio dos Santos (sei que é uma perspectiva sociológica, mas…) o que você acha?

  2. Em História hoje se percebe um abandono da universalidade, das meta narrativas… se valoriza cada vez mais de forma exclusiva as micro-historias. A filosofia anda se movimentando no mesmo sentido? 🤔🤔

  3. Partindo do pressuposto que o povo brasileiro ainda busca uma identidade, não concebo uma filosofia genuinamente brasileira. Estamos, por demais, como a Psiquiatria no século XIX, na cópia da Filosofia produzida. Seria bom partir da Filosofia produzida em busca de uma identidade própria.
    No campo da Sociologia, encontramos essa tentativa em vários autores, citando um,Buarque de Holanda no Raízes do Brasil. “O homem cordial” e toda trajetória do livro busca as Raízes do povo brasileiro, uma identidade. No próprio surgir da Filosofia, na Grécia, essa floresce no símbolo de um modo de ser e pensar…. Assim por diante.

    1. Na sociologia existe tbm a Teoria da Dependência, que busca pensar o espaço da América Latina na dinâmica do capitalismo. Teotônio dos Santos, FHC, etc… na história existe um movimento de buscar uma identidade nacional em Celso Furtado, Caio Prado tbm…

  4. […] Tendo em vista essa natureza da filosofia, creio não ser exagero afirmar que a atividade filosófica no Brasil – representada por seus maiores nomes, os quais pretendo expor em outras oportunidades –, ao manter a ligação com a tradição filosófica clássica, está mais ligada ao fio do ser da filosofia perene do que aparenta à primeira vista. Não há, portanto, uma filosofia nacional ou regional. O que há é o desafio de desenvolver um modo particular de lidar com problemas universais. E o Brasil deu-nos grandes filósofos à altura dessa tarefa. (texto base) […]

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