Em outra oportunidade, afirmamos que o padre Stanislavs Ladusãns elencou quatro pontos característicos que demarcam o exercício da filosofia no Brasil, dentre os quais, a ausência de um sistema filosófico original. Não é totalmente incorreta a afirmação do filósofo, se entendermos ‘’sistema original’’ como algo radicalmente novo e que consolida uma nova visão orgânica e universal da realidade. Contudo, ao menos um filósofo brasileiro construiu um sistema filosófico, fundamentado em princípios metafísicos e que tem como finalidade oferecer uma visão unitária do real: Mário Ferreira dos Santos.
O próprio Mário Ferreira, nas páginas iniciais de Filosofia Concreta afirma que seu pensamento se apresenta como um sistema independente, não se filiando a nenhum sistema filosófico. Sua filosofia não era platônica, nem aristotélica, kantiana ou hegeliana. O pensamento de Mário Ferreira dos Santos dialoga com todas essas tradições, mas não abraça nenhuma delas de maneira direta. A Filosofia Concreta emerge como um sistema novo, que se pretende filosófico não por abraçar esta ou aquela filosofia, mas por pertencer a uma tradição de pensamento.
Aliás, é possível falar em uma tradição de pensamento dentro da filosofia? Afinal, diante da multiplicidade de correntes e sistemas filosóficos que o mundo contemporâneo nos apresenta, não é de se admirar que o senso comum veja na filosofia um mero exercício erístico, um louvor à discussão pela discussão. A vastidão dos problemas filosóficos e de respostas (ou a ausência delas) dá-nos a impressão de que não é possível estabelecer um plano de fundo, um céu em comum, sob o qual se desenrola o filosofar. Mário Ferreira dos Santos parte justamente deste problema: é possível estabelecer um ponto de convergência universal da filosofia? Há um ponto em comum o qual todos os sistemas e correntes da filosofia se cruzam?
Mário [Dias] Ferreira dos Santos (1907-1968) nasceu na cidade de Tietê, estado de São Paulo. De mãe católica e pai ateu, Mario Ferreira desde cedo conviveu com a abertura ao contraditório, que o levou já na infância ao interesse pela filosofia. Percebendo a vocação do filho à vida intelectual, Francisco Dias Ferreira dos Santos, contrariando seu próprio ateísmo, matricula Mário Ferreira em um colégio jesuíta, onde recebeu a educação filosófica que lhe acompanhou pelo resto da vida.
Autor de uma obra vasta, seus escritos somam mais de cem volumes, incluindo os títulos inéditos e a Enciclopédia de Ciências Filosóficas e Sociais que contém 52 volumes e está dividida em três séries, sendo a opus Magnum do filósofo. Os livros da Enciclopédia estão estruturados de uma maneira orgânica, cujos assuntos dialogam entre si em uma relação de complementariedade e interdisciplinaridade. Ao fim da leitura de alguns volumes da Enciclopédia, é quase impossível não notar que essa série de livros formam uma lógica interna. A Enciclopédia é a própria filosofia do Mário Ferreira dos Santos dialogando com as mais variadas áreas do saber: Teoria do conhecimento, Filosofia da História, Metafísica, Teologia etc.
Nestas breves e modestas palavras que se seguem, não nos atreveremos a expor de maneira exaustiva todos os aspectos do pensamento de Ferreira dos Santos, limitando-nos apenas a apresentar uma visão geral de certos elementos da Filosofia Concreta.
Se há um ‘’ponto de convergência universal’’ da filosofia, é necessário que a busca desse ‘’objeto de estudo’’ pressuponha um método de investigação universalmente válido que permite ao filósofo um conhecimento mais rigoroso da realidade, seja ela qual for. Na busca por um método que permita ao filósofo debruçar-se sobre a realidade em todos os aspectos possíveis de serem investigados, Mário Ferreira desenvolveu o que ele chamou de ‘’Decadialética’’, um método de tomar qualquer objeto de estudo sob dez campos diferentes de realidade. São eles:
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Campo do Sujeito x objeto;
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O Campo da atualidade x virtualidade;
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Distinção entre as virtualidades (possibilidades reais) e as possibilidades reais, ou meramente hipotéticas;
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Intensidade x extensidade;
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Intensidade x extensidade nas atualizações;
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Campo das oposições do sujeito: razão x intuição;
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Campo das oposições da razão: conhecimento x desconhecimento;
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Campo das atualizações x virtualizações
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Campo das oposições da intuição;
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Campo do variante x invariante.
Estes dez campos de investigação dialética resolvem-se em cinco planos, denominados ‘’pentadialética’’, em que um objeto pode ser de fato estudado: como unidade, como parte de um todo, como capítulo de uma série, como peça de um sistema (estrutura de tensões) e como parte do universo. Segundo Mário Ferreira, seguindo esse método, é possível investigar qualquer área da realidade, examinando-a com rigor matemático todo seu conjunto de possibilidades e efetividades. Em resumo, tanto a decadilética quanto a pentadialética formam um método de conhecimento da realidade cujo esforço gira em torno de provar a possibilidade de se estudar problemas reais que transcendem a subjetividade. A realidade, tomada como objeto de estudo ou método de conhecimento, é concreta.
O termo concreto não é entendido aqui no sentido comum que empregamos ao termo, como algo físico ou empiricamente válido, mas sim em seu sentido literal: um conhecimento que unifica no sujeito tudo o que pode ser estudado sobre determinado objeto, ou como diz o filósofo, que forneça ‘’uma visão unitiva das ideias e dos fatos’’.
Por isto a importância da dialética e do ‘’rigor matemático’’, pois tudo o que se apresenta como universal, também fazer parte das realidades particulares e vice-versa. Daí o fato de sua filosofia ser também positiva, ou seja, afirmativa. Só a filosofia afirmativa e concreta pode conhecer o ser. Esse é o esforço de Ferreira dos Santos pela busca de uma Filosofia Concreta.
A assim denominada ‘’’Filosofia Concreta’’, fundamenta-se em uma Tradição filosófica. Ferreira dos Santos, ao fundamentar seu sistema filosófico, parte do pressuposto de que o que é verdadeiro, pode ser provado em todos os métodos racionalmente válidos de verificação. Dessa maneira, a filosofia de Mário Ferreira busca ser um sistema demonstrável desde as teses mais gerais até as realidades particulares através de qualquer meio filosoficamente válido; o que é verdadeiro pode ser conhecido através da indução, dedução, dialética, lógica, redução eidética etc. Em resumo, o que Mário Ferreira dos Santos pretende, ao buscar o ‘’ponto arquimédico’’ da filosofia, é ‘’alcançar uma certeza da qual ninguém possa duvidar com seriedade’’. E qual seria essa certeza, esse ponto de convergência universal?
Existe um ponto arquimédico, cuja certeza ultrapassa ao nosso conhecimento, independe de nós e é ôntica e ontologicamente verdadeira: Alguma coisa há (Filosofia Concreta, pág. 29).
(…)E qual a possibilidade de erro nisso? Afinal, se afirmo que alguma coisa há, o único erro poderia estar em não haver nenhuma coisa, o que é negado pelo meu próprio ato de pensar, até pelo mais cético ato de pensar, pois se nada houvesse, não haveria sequer esta dúvida (pág. 30).
A tese elementar da filosofia concreta não se trata de um mero sincretismo ou ecletismo filosófico, mas sim de uma tentativa de estabelecer um diálogo com a tradição filosófica, entendendo como tradição filosófica um sistema de pensamento que permite ao ser humano um conhecimento verdadeiro e universalmente válido sobre o ser. Da tese fundamental alguma coisa há, deduz-se as demais teses que se pretendem universalmente válidas, por exemplo: ‘’alguma coisa há’’ afirma uma presença, um ser e este ser realiza-se como conceito e também como ente, afinal, a negação de que alguma coisa há, seria afirmar o nada. Logo, alguma coisa há não é somente um ente da razão, mas um ente que se dá efetivamente na realidade. A filosofia concreta é o esforço de se fundamentar juízos válidos e provados no plano ontológico e ôntico (individual). Do postulado inicial ‘’alguma coisa há’’, Mário Ferreira deduz as demais 326 teses da obra, que se divide em três tomos.
É claro que o sistema denominado filosofia concreta é passível de críticas e análises mais aprofundadas. Por exemplo, do status ontológico da tese ‘’alguma coisa há’’, não se deduz, necessariamente, uma metafísica que admita a Pessoa de Deus, como sujeito na história; uma analogia entis é bastante difícil de se postular, afinal, as teses da filosofia concreta se coadunam sob uma relação de univocidade do ser. Outro ponto importante: a Filosofia Concreta desenvolve-se no plano cosmológico – ou ‘’quaternário’’, para utilizarmos a terminologia do filósofo – e a tentativa de fundamenta-la metafisicamente só acontece na terceira série da Enciclopédia, a série das ‘’Sabedorias’’, cujas obras continuam ainda inéditas e, em sua maioria, necessitando de profundas revisões e textuais e conceituais.
De qualquer modo, é inegável o valor do esforço filosófico de Mário Ferreira dos Santos, talvez o único filósofo brasileiro a se propor o trabalho hercúleo de erigir um sistema filosófico que dialogue com todas as áreas do conhecimento humano e que, ao mesmo tempo que se pretenda inédito, esteja também inserido em uma tradição filosófica que atravessa os séculos. Se a filosofia é o esforço de demonstrar que o ser não admite vácuos e sua existência é um dado universal, a tese ‘’alguma coisa há’’ é uma das suas mais gloriosas provas.
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