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por Cristian Junior, especial para o LiceuOnline.

Uma breve reconstituição histórica nos mostraria que, em assuntos de diplomacia internacional, as questões se tornam bem mais complexas quando ambos os lados possuem justificativas minimamente coerentes ao envolvimento em um conflito. A Rússia tem grandes razões de preocupação com a expansão da OTAN rumo ao leste, em sua direção. O diplomata brasileiro Roberto Abdenur, em entrevista recente, nos lembra que em 1989 o presidente da então União Soviética, Mikhail Gorbatchov, se reuniu com o secretário de Estado estadunidense, James Baker, logo após a queda do Muro de Berlim e unificação da Alemanha. James Baker assumira o compromisso de que a Otan não avançaria uma única polegada na direção da então URSS. Abdenur avalia que foi um erro estratégico-histórico gravíssimo de Gorbatchov tratar de forma verbal uma pauta que deveria ser colocada da forma mais rigorosa possível em termos de tratados diplomáticos. Neste contexto é que, hoje, Putin pressiona os EUA e a OTAN com exigências maximalistas. Alguns analistas afirmam ser esta a situação mais grave desde a Guerra Fria.

Acontece que alguns ex-membros da União Soviếtica, principalmente países do Báltico, já entraram para a Otan. Também entraram, sentindo-se ameaçados pela Rússia, ex países comunistas, como Polônia, Hungria e Tchecoslováquia. A importância da Ucrânia está no fato de que ela é a última peça do tabuleiro entre a Rússia e o Ocidente. O putin mesmo definiu como limite o eventual ingresso da Ucrânia na Otan, considerando isso a culminação da ameaça da Otan à sua segurança nacional. O que a Rússia quer mesmo é que a Otan pare de colocar armas nas suas fronteiras. E, nesse sentido, a Rússia tem total razão em se sentir vulnerável, tendo em vista que foi invadida em 1811 e 1812 pela França Napoleônica e, 130 anos depois, pela Alemanha Nazista de Hitler. Além disso, de forma não menos importante, cabe ressaltar o porquê de o conflito se protagonizar com a Ucrânia e não com outras ex repúblicas Soviéticas. É algo interessante já que, há alguns anos atrás, em 2014, houve o problema com a região da Criméia, em que a situação se parece muito com o atual. Entre esses conflitos e outros, já houveram incidentes com ex-presidentes ucranianos, envenenamento de líderes, e por aí vai…

Vale lembrar, também, que Rússia “começou”, de fato, no território que hoje é a Ucrânia, tendo, depois, migrado para Moscou. A primeira capital da Rússia é Kiev, atual capital da Ucrânia. Isto faz com que o país seja ainda visto por muitos russos como parte da chamada “Grande Rússia”, e daí a recusa e dificuldade de Putin, bem como de outras autoridades russas, no reconhecimento da soberania e independência ucraniana. Esse não-reconhecimento é inadmissível para os países ocidentais.

Por outro lado, também tem boas razões para se sentirem ameaçadas as nações que participaram do Pacto de Varsóvia, que se dissolveu com o fim da URSS. Alguns destes países ingressaram na OTAN e mesmo na União Européia. De qualquer forma, em questão de estratégia militar, o Putin decidiu por se movimentar mesmo a invadir a Ucrânia, também, por questões climáticas. Isto porque o leste da Ucrânia, mais próximo da Rússia, se encontrava congelado devido ao inverno, o que facilita a movimentação de tanques e blindados. Com a elevação da temperatura em março, marcando o início da primavera, o gelo derretido se transformaria em barro, e o aparato militar teria dificuldades em avançar. Então, a conclusão do assunto não poderia tardar.

No momento, Putin está em Kiev. Minha intuição é a de que ele vai querer derrubar o governo, instalar outro que seja pró Rússia, e depois retirar as tropas. Manter uma ocupação envolve gastos, vidas e riscos. Uma ocupação poderia criar um novo Afeganistão: não é bom se estabelecer à força porque se fomenta um nacionalismo violento como reação das pessoas que habitam o lugar. Me parece que objetivo do Putin é o inverso: causar uma opinião pública nacionalista russa, convertendo setores mais conservadores da população, com vistas às próximas eleições.

Estamos fartos de ver lideranças autoritárias, ditadores, ou mesmo republicanos que vencem eleições de forma limpa como nos Estados Unidos(não é o caso do Putin), fomentar um inimigo externo. Causar uma guerra, entretanto, é uma outra coisa. Envolve o princípio universal do direito internacional. E pra quê?

O comunismo acabou, a URSS se desintegrou, e os seus países satélites foram se integrando à OTAN, mas não com o objetivo de ameaçar a Rússia, especificamente, e sim como uma forma de se integrar e se articular com a Europa. Embora eu tenha levantado a bola de que a Rússia também tem lá os seus motivos, e que a geopolítica não se resume a mocinhos e bandidos – a geopolítica não é tão óbvia; não se trata de bons e maus, nem mesmo de esquerda e direita – penso que o direito internacional deve ser guardado, e a integridade territorial dos Estados deve ser respeitada.

A Rússia, entretanto, não pensou assim. Invadiu por terra, céu e mar um território que oficialmente a comunidade internacional ainda reconhece como pertencente à Ucrânia. Embora também haja este outro aspecto, o da expansão rumo ao leste da OTAN, com suas motivações próprias, fator que gera também grandes preocupações por parte da Rússia. A Rússia, neste sentido, sempre foi objeto de cobiça e de invasão, até mesmo pelo mistério, pela diferença, pela alteridade. Representa um enigma para o mundo Ocidental, e nunca foi totalmente aceita por ele. Você tem uma história para tê-la como inimigo: foram invadidos duas vezes pela Alemanha no século XX; por Napoleão no XIX; e podemos voltar mesmo até os cavaleiros templários… Além de que é o maior território do mundo, com possibilidades de recursos inesgotáveis (até hoje não se sabe ao certo o que se pode explorar de regiões como a Sibéria, por exemplo).

Há também o fator de que o complexo industrial-militar precisa de um inimigo para se manter operante e continuar produzindo, independente da tendência de queda das taxas de lucro. É o que nos lembra Isaac Deutscher (1907-1967), escritor polonês. O capitalismo em condições normais de temperatura e pressão, precisa que suas mercadorias sejam consumidas para que se produzam outras, alimentando o ciclo. Em termos militares, porém, se produz para acumular mercadorias que, espera-se, não sejam consumidas: mísseis, armas nucleares, dentre outras. O objetivo é deixar um país sempre à frente do outro, com um arsenal maior, intimidando-se mutuamente e, enquanto isso, o motor do capital continua operando.

A Rússia, por outro lado, não tem sido uma potência expansionista. Ela tem o interesse de se defender, aparentemente. Podemos discutir os motivos pelos quais se quer defender, e a forma como se defende, mas não o fato em si. E isso não tem nada a ver com o comunismo, mas com uma perspectiva conservadora de entendimento do chamado Império Russo, que perdeu território depois da primeira guerra mundial no tratado de Brest-litovsk, depois recuperou no fim da segunda guerra mundial, e voltou a perder com a desintegração da URSS.

Hoje, o país é capitalista. Um capitalismo peculiar, com oligarquias, mas um país capitalista com muito investimento estrangeiro. Com as sanções europeias à Rússia, esta se vê cada vez mais lançada a abraçar relações com a China. O conflito entre EUA e Rússia se tornou um conflito entre EUA e Eurásia. A realidade hoje é a de um mundo multipolar, em contraposição aos mundos bipolares da Guerra Fria e unipolar da pós URSS. Existe também uma estranheza em transformar a Ucrânia em aliado. Quais são os interesses da OTAN em manter uma relação com a Ucrânia? Fica aí o questionamento… De qualquer forma, nada disso justifica a violação da integridade territorial. Isso sempre é criticável, indiscutivelmente. Mas a situação como um todo é muito complexa, e deve ser levada em conta: a expansão para o leste da OTAN contrariando até mesmo a doutrina dos estadunidenses. E, neste sentido, a posição do governo brasileiro neste conflito, expressa em uma nota do Itamaraty, e no discurso do embaixador na ONU, está basicamente correta, penso. Curiosamente, foi parecida com a posição chinesa, muito cautelosa. Defende o direito à segurança nacional, mas também o direito de autodeterminação dos povos. Foram notas moderadas.

Os mísseis nucleares do Putin também não desapareceram, nem desapareceram os da OTAN, o que faz a manutenção desse clima resgatado dos tempos da Guerra Fria. Podemos nós, de alguma forma, evitar que essa guerra continue? Podemos evitar conflitos nucleares agora ou no futuro? A resposta a estas perguntas talvez seja um dos motivos pelos quais deixamos a vida levar não só nós mesmos, mas também a guerra.

Alguns analistas imaginaram que a guerra seria muito rápida. Essa ideia foi construída por uma leitura da guerra influenciada pela visão russa do conflito, e também pela mídia ocidental nos primeiros dias. Outros chegaram a dizer que os russos seriam recebidos como uma espécie de “libertadores”, e que a invasão poderia gerar até mesmo a queda do governo ucraniano. Mas o desenvolvimento do conflito se mostrou diferente. A rapidez das forças armadas russas não atenderam a expectativa destes analistas. Os russos encontraram forte resistência em várias regiões, ainda mais nas principais cidades.

Hoje já nos encontramos no vigésimo sexto dia do conflito, e o avanço tem se mostrado muito lento. O custo humano já é enorme, estimado em 4 milhões, entre refugiados, mortos e feridos. A questão que se coloca é a tendência ao ataque aos grandes centros urbanos. A tragédia, em termos de custo humanitário, pode ser muito maior. Já vimos ataques a escolas, hospitais e maternidades, dentre outros pontos civis. Em grandes cidades, essas cenas podem aparecer com mais frequência.

Outros analistas têm criticado a não interferência direta da OTAN no conflito. Penso que temos que lembrar que a Ucrânia não pertence de fato à OTAN (estavam apenas em negociações), e que nenhum dos países pertencentes foi atingido. Até existem negociações rolando, enquanto bombardeios muito pesados atingem seus alvos. Tudo indica que a Ucrânia vai ter que ceder territórios. Um dos principais interesses russos é a inserção na constituição ucraniana o reconhecimento da Criméia como território russo, bem como a região de Donbass; a neutralidade da Ucrânia e sua não entrada nem na OTAN, nem na União Europeia; e a proteção a língua russa falada por boa parte da população, bem como a cultura. São as exigências para a paz.

Daqui alguns anos, quando se abrirem os documentos a serem investigados pelos historiadores, talvez descubramos que a estratégia russa fosse mesmo a conquista paulatina de terreno e consolidação gradual da conquista. Mas, no calor do momento, não é o que parece.

Enquanto Putin discursava em um estádio lotado, para fomentar o nacionalismo russo (e este é um dos seus grandes talentos), Arnold Schwarzeneggerr, ex governador republicano da Califórnia, fazia um vídeo de aproximadamente 10 minutos, questionando a ideia de Putin estar invadindo a Ucrânia para “desnazificá-la”. Schwarzeneggerr, é verdade, possui certo diálogo com os democratas, mas é republicano e faz parte do espectro da direita. Austríaco naturalizado americano, seu pai lutou na segunda guerra mundial contra os nazistas.

No vídeo, ele aponta para o fato de que o presidente da Ucrânia é um judeu, e que teve três tios assassinados pelos nazistas. Sabemos que isso pode significar muito, ou não significar nada, a depender da biografia de Zelensky e da dinâmica do governo ucraniano. De qualquer modo, para ele, a Ucrânia não começou esta guerra. “Nem os nacionalistas ou os nazistas, mas aqueles no poder no Kremlim”, disse ele. Alega também que esta não é uma guerra do “povo russo”, talvez, mesmo que superficialmente, se posicionando contra a russofobia que se instalou em nossos dias em todo o Ocidente.

Como ele pode afirmar isso? Por uma razão simples, segundo a análise do professor Paulo Ghiraldelli: a extrema-direita ucraniana tem um partido, o Partido do Corpo Nacional. Na última eleição obteve apenas 2% dos votos. O próprio batalhão Azov, que se encontra dentro da guarda nacional ucraniana, de extrema direita, é uma força ultranacionalista. Apesar de, até onde se sabe, serem um número relativamente pequeno, em torno de 1500 pessoas, tem grande influência no governo ucraniano. Eles defenderam manifestantes da repressão contra o governo colocado pelos russos no passado, e por isso entraram na guarda nacional. Analistas apontam para o fato de que o batalhão Azov faz diretamente parte do governo ucraniano, tendo dominado o Ministério do Interior. É importante termos em conta que opinião do Schwarzenegger não foi de um ex-ator, ou de um ex-fisiculturista, mas a opinião política de um ex-governador de um dos principais estados dos Estados Unidos. E fez isso querendo convencer a população russa a desistir da guerra.

Por outro lado, você tem o filósofo comunista Slavoj Zizek, que já foi até candidato à presidência do seu país que, hoje, se encontra no meio da Guerra: a Eslovênia. Zizek publicou um artigo cujo tema central é a unificação da Ucrânia no Project Syndicate . No artigo, ele questiona a fala do Putin de que não havia escolha: devido aos mísseis da OTAN, ele teria que fazer a guerra, inevitavelmente, para combater o fascismo ucraniano. O filósofo eslovêno aponta um resgate das ideias de Ivan Ilyin, para ele o ideólogo de uma espécie de versão russa do fascismo. Zizek apontou que as obras dele voltaram a ser impressas e entregues a aparelhos do governo e bases militares. A ideia principal é o apoio ao líder, não simplesmente escolhê-lo ou legitimá-lo. Nesta vertente, o líder é a própria Rússia, e deve ser defendido, acima de tudo. Zizek também aponta as ideias do filósofo russo Dugin, colocado por setores da direita ocidental como “ideólogo” de Putin. Para este, a verdade é aquilo em que se acredita, não necessariamente uma realidade a qual nós tomamos posse pela inteligência. Assim, para decidir qual verdade deve prevalecer, o caminho é a guerra.

A Rússia, entretanto, já se encontra totalmente isolada do ocidente. Existe um apoio tímido, ainda, de Índia e China, que se encontram no seu primeiro grande desafio como potência mundial. E, depois de alguns oligarcas russos pressionarem o governo por causa das sanções do Ocidente, o discurso de Putin passou a ser de ataque a eles que, antes, eram uma de suas bases de sustentação, dizendo que vivem no exterior, com vidas de grande luxo e diferenciando-os do “verdadeiro povo russo”.

Para alguns,  Putin está caminhando para o seu fim, e não para sua glória. Acredito que a tendência maior seja a continuidade da guerra e a tomada de Kiev a qualquer preço por parte da Rússia. Grande parte da cidade já se retirou, é verdade, mas a perda em termos de infra-estrutura e economia ,por si só, pode ser catastrófica.

A grande questão é que os pontos levantados pela Rússia devem ser realmente negociados, e não podem ser ignorados. Isso é consequência da nova ordem mundial multipolar que se mostra cada vez mais como realidade. Devemos ter em conta o contexto amplo da situação. Boa parte da Europa afirmou aumentar seus gastos militares. A Alemanha mesmo disse oficialmente que vai triplicar. Como disse, tudo indica que a guerra ainda vai se arrastar para abril, maio… Mesmo tendo um contexto imperialista que já vinha se desenvolvendo desde o final do século XIX, a Primeira Guerra Mundial tem como marco de seu início a data de 28 de julho de 1914, exatos 30 dias após o assassinato do arqueduque Francisco Ferdinando da Áustria, herdeiro do império Austro-Húngaro, considerado o estopim para o conflito. Isso não significa que não tenhamos que intensificar uma campanha internacional pela paz, e pela salvação nacional da Ucrânia. Devemos lembrar que o Putin, bem como todos os líderes das outras potências, dorme com os controles das ogivas nucleares debaixo do travesseiro.

Imagem de capa: The battle of Kulikovo Field in 1380 (20th Century Painting) – BBC.

O texto aqui apresentado se constitui de uma junção de três artigos de opinião publicados pelo autor no Jornal Diário de Goiás.

Sobre o(a) Autor(a)

Cristian Junior

Doutorando em História pela UFG.
Publicado no Liceu Online por:

Comentários...

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  1. Refletindo a respeito desse belo texto, tenho presente que a ocasião é sobremaneira oportuna para trazermos a lume o clássico Leviatã, o livro mais famoso produzido pelo filósofo inglês Thomas Hobbes, publicado em 1651, ocasião em que se difundiu frase que se tornou memorável: “O homem é o lobo do homem”.
    Essa máxima também é conhecida com os seguintes dizeres: “O homem é o lobo do próprio homem” e “O homem é um lobo para os seus semelhantes”.
    Nesse cenário, parece-nos legítimo concluir que o filósofo inglês entendia que o homem representava a grande ameaça à espécie “Homo sapiens”.
    Ainda segundo Hobbes, “como tendência geral de todos os homens, [há] um perpétuo e irrequieto desejo de poder e mais poder, que cessa apenas com a morte”.
    Nessa linha de cognição, peço vênia aos doutos para concluir que o homem, “per se”, não tem, e nunca terá, a solução ideal para os problemas da espécie “Homo sapiens”!
    Por fim, temos como prudente não relegar ao oblívio os sapientíssimos dizeres da Bíblia Sagrada: “Maldito o homem que confia no homem, e faz da carne o seu braço, e aparta o seu coração do SENHOR!” (Jeremias 17:5).

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