Introdução
Este presente ensaio caminha no sentido de refletir sobre possibilidades e alternativas para a compreensão da figura, ou pessoa, de Jesus em sua historicidade, isto é, descartando pressupostos ou questões de ordem teológica. Sendo eu cristão, membro de uma Igreja Protestante de vertente luterana, surgida a partir do grande desapontamento de 1844 – um fenômeno marcadamente religioso –, penso que uma busca pela historicidade de Jesus, ao invés de se contrapor a fé, pode resultar em aprimorá-la, torná-la mais consciente e produtiva no estudo dos Evangelhos, caminhando em direção oposta ao fundamentalismo.
O ponto de partida é o conceito de Jesus Histórico: um conceito utilizado pelo professor do Programa de Pós Graduação em História da Universidade Federal do Rio de Janeiro, André Chevitarese. Seria praticamente impossível, no Brasil, iniciar pesquisas referentes ao problema histórico de Jesus sem partir deste que foi o pioneiro. Chevitarese se destaca não só por sua vasta produção acadêmica sobre este objeto, mas por seu trabalho nas redes sociais de divulgação e ampliação da acessibilidade destes conhecimentos. Aqui, a pessoa de Jesus, o Jesus de Nazaré, e os acontecimentos que envolvem seu nome, são colocados como objeto de ciência. Discussões baseadas em fé, seja ela cristã ou qualquer outra, não fazem parte do objetivo deste texto.
Prefiro, neste ensaio, chamá-lo de Jesus de Nazaré justamente para destacar sua historicidade, localizando-o no tempo e no espaço. Por isso descarto, também, a nomenclatura de Jesus Cristo, aquele que foi reconhecido como filho de Deus, ou mesmo como o próprio Deus. Isto porque Cristo, sabemos, não é um sobrenome, mas um título messiânico de caráter marcadamente religioso. A única certeza, levantada por Chevitarese (2022), e da qual compartilhamos, é que o Jesus Histórico, ou o Jesus de Nazaré, existiu. Como pessoa, caminhou pela Terra. Então, pretendemos discutir maneiras e possibilidades de se ler ou pesquisar este Jesus – em forma de notas baseadas na bibliografia referenciada, bem como por cursos oferecidos pelo professor já mencionado – que passou pela Galiléia durante o século I de nossa era, à luz da ciência.
O Jesus Histórico é resultado de buscas que levaram séculos, dificultadas pela documentação escassa e pelo caráter oral da sua tradição inicial. Toda pesquisa deve estar baseada em Teoria, metodologia e documentação. Muito do que se fala de Jesus, entretanto, ou mesmo dos Evangelhos, é marcado pela compreensão teológica. Um método de leitura se faz necessário. A Bíblia Sagrada, aqui, é tomada como um documento histórico referente ao seu próprio tempo. Destaca-se, em primeiro lugar, que os textos neo-testamentários precisam ser lidos cronologicamente, e não segundo a organização teológica (Chevitarese, 2022). Devemos, também, partir de abordagens teórico-metodológicas para a sua leitura.
O problema
Existe um princípio, referente à produção científica sobre qualquer objeto: o paradigma. Este conceito não pertence ao vocabulário cotidiano das Igrejas ou templos. Se refere ao modelo, isto é, a forma como o mundo é pensado, e sob a qual as ideias começam a se articular em teoria. No entanto, como bem discute Ginzburg (2006), eles são históricos e, portanto, passíveis de mudança. Por isso se torna necessária uma História dos paradigmas, ou uma História dos conceitos. Ou, ainda, uma Teoria da História.
Nas religiões antigas e medievais (e muitas permanecem até hoje, como o judaísmo, cristianismo e islamismo, por exemplo), acredita-se que as divindades também habitavam a physis. Por isso, ainda não eram compreendidas como transcendentais, mas simplesmente físicas. Mesmo em A Ilíada e A Odisséia, no berço da civilização ocidental, percebemos o mundo dos homens como uma realidade co-participativa com o mundo dos deuses, não havendo separação entre físico e metafísico. O paradigma de compreensão do mundo, do universo, aqui, pode ser chamado de geocêntrico ou antropocêntrico. Isto é, o centro das preocupações humanas eram o planeta Terra ou o ser humano que nele habita. De alguma forma, no século II, um egípcio helenizado chamado Cláudio Ptolomeu, nos lembra Chevitarese (2022), constatou que o universo girava em torno do planeta Terra. Assim sistematizou o mundo em que vivia.
Há, inclusive, uma passagem nos evangelhos em que Jesus passa pela experiência da transfiguração, na presença de alguns discípulos. Diante dele apareceram, segundo a narrativa bíblica, Moisés e Elias:
Seis dias depois, Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João, irmão de Tiago, e os levou, em particular, a um alto monte. Ali ele foi transfigurado diante deles. Sua face brilhou como o sol, e suas roupas se tornaram brancas como a luz. Naquele mesmo momento apareceram diante deles Moisés e Elias, conversando com Jesus”. Bíblia Sagrada, Nova Versão Internacional, Mateus 17:1-3.
Percebe-se que os mundos físico e metafísico estão integrados na perspectiva do autor. O próprio apóstolo Paulo escreve sobre uma ida ao céu, não sabendo se em corpo ou em espírito, sem ser, até onde se sabe, questionado:
Conheço um homem em Cristo que há catorze anos foi arrebatado ao terceiro céu. Se foi no corpo ou fora do corpo, não sei; Deus o sabe. E sei que esse homem — se no corpo ou fora do corpo, não sei, mas Deus o sabe — foi arrebatado ao paraíso e ouviu coisas indizíveis, coisas que ao homem não é permitido falar”. Bíblia Sagrada, Nova Versão Internacional, 2 Coríntios 12:2-4
Pelo que sabemos até então, esse tipo de experiência narrativa eram consideradas reais, tendo em vista que o modelo, ou paradigma, geral sustentava essa percepção. Céu, inferno, anjos ou demônios, assim como deuses de outras culturas religiosas, coabitavam o mundo com os seres humanos, sendo integrados a eles. Este é o chão sob o qual tanto o Antigo, quanto o Novo Testamento, foram escritos: de pessoas que, compreendia-se, andavam sobre as águas, curavam apenas com o toque ou palavra e se relacionavam com os deuses.
Em um determinado momento, percebemos que este paradigma se torna insuficiente. Claro, isto se dá em processo, gradativamente, conforme a experiência humana no tempo, embora Nicolau Copérnico possa ser entendido como ponto de inflexão. No século XVI, ele vai demonstrar que o centro do Universo não é a Terra, mas o Sol, em grossas palavras. Daí surge o Heliocentrismo, um novo paradigma.
Há uma outra mudança radical referente aos paradigmas. De forma geral, a Bíblia Sagrada trata de três continentes: Europa, África e Ásia. No final do século XV os europeus chegaram ao continente americano. Colombo em 1492, e Cabral em 1500. Da América do Norte até a América do Sul, todo este vasto território, existia mas não estava registrado na Bíblia. A partir de seu “descobrimento”, se tomarmos o ponto de vista dos europeus, e do retorno das naus com informações, indígenas, plantas e animais até então totalmente desconhecidos, surgiram algumas dúvidas. Os indígenas, plantas e animais nunca antes vistos pelos europeus, estavam dentro da Arca de Noé – um importante marco temporal para o pensamento hebraico-judaico-cristão? Se não, como poderiam existir? De alguma maneira passaram também a se questionar sobre a própria Bíblia. Não seria ela um livro pleno e totalmente verdadeiro, no sentido de conter toda a verdade universal?
A ideia padrão, sugerida a partir de uma certa leitura da Bíblia, era a de que Deus havia criado um mundo estático, e de que a natureza era exatamente aquela do período da criação em Gênesis, com a única diferença da degeneração pelo pecado. No entanto, já no século XVII, começaram a aparecer fósseis de animais que haviam sido extintos. Hoje mesmo os religiosos entendem que o mundo mudou. Já está fixado em nossa mente, intelectualmente, o princípio da razão construído a duras penas pela modernidade. É neste período que surge a teoria do conhecimento.
A teoria do conhecimento, novo paradigma que se constrói, de forma geral, pressupõe que a existência demanda prova. Se não há prova, não há certeza. A partir dos séculos XVI e XVII o mundo físico e o mundo metafísico, antes integrados, começam a se separar. O mundo metafísico passa a ser empurrado para a fé já que, sob o ponto de vista da ciência, nem sequer existia mais. A ciência se impôs como norma, regra. Nesse momento é que as buscas pelo Jesus Histórico aparecem.
O início da busca
Fenômenos de ordem natural eram, até então, entendidos sob a perspectiva de satisfação ou insatisfação dos deuses. Passaram, a partir do novo paradigma da teoria do conhecimento, a precisar serem explicados, assim como outros fenômenos da história. Da mesma forma, as crenças, a fé, a existência do mundo metafísico, precisaram passar por certos critérios de demonstração. Isso impacta muito a experiência cristã.
Valores e princípios religiosos básicos, muito caros ao cristianismo, foram violentamente questionados. É neste contexto que surge Reimarus (1694-1768), um dos pioneiros dos estudos acerca do Jesus Histórico. Foi professor de línguas orientais na Universidade de Hamburgo, no território que hoje chamamos de Alemanha. Isso já diz bastante sobre o presente em que ele vivia: as potências europeias estavam construindo um vasto império e precisavam de especialistas em línguas, especialmente as orientais, para formar seus quadros militares e comerciais, e para estarem presentes em todos estes territórios. Reimarus tinha, também, formação em teologia.
Curiosamente, seus textos começaram a ser publicados em 1774, 10 anos após a sua morte. Ele havia produzido um conjunto de textos e reflexões sobre o cristianismo. Pelos sete fragmentos, percebe-se que o autor tinha um posicionamento deísta, isto é, acreditava que Deus criou o mundo mas, depois de tê-lo criado, não mais interveio nele. Abre-se a possibilidade de que tudo possa ser explicado, então, por leis naturais, físicas, e que os seres humanos seriam capazes de pensar e desenvolver suas capacidades autonomamente. Provavelmente, se estivesse em vida quando publicassem seu material, sofreria consequências, tendo em vista que a Igreja respondia de forma muito violenta ao mundo que se construía, aos poucos, sob bases científicas e a partir da teoria do conhecimento.
Então, dos sete fragmentos publicados, Reimarus deixa muito claro sua visão de que boa parte das narrativas evangélicas são problemáticas, por que são contraditórias entre si. Ele argumentava que Jesus esperava com toda força que Deus interviesse no último momento de vida por ele, mas obviamente não interveio. Então Jesus teria sido abandonado por suas próprias crenças quando clama “Meu Deus, porque me abandonastes?” (Bíblia Sagrada, Nova Versão Internacional, Mateus 27: 46), em referência a passagem Salmos 22:1-8 – aqui a semelhança com o contexto de crucificação de Jesus não é coincidência. Os apóstolos teriam, então, fundado Igrejas ressignificando a passagem de Jesus pela Terra. De certa forma, Reimarus pensa as leituras evangélicas como um conjunto de textos contraditórios, repletos de narrativas de milagres, isto é, de mitos.
Chevitarese (2022) levanta que, durante o século XIX, se produziram cerca de duzentas biografias de Jesus. Um texto bastante conhecido, criticado por Nietzsche, é “The Life of Jesus, Critically Examined”, de David Friedrich Strauss. O autor faz uma verticalização, levando às últimas consequências uma análise nem tanto sobre Jesus, em si, mas da documentação acerca dele. O livro é da primeira metade do século XIX, mais especificamente do ano de 1835. É nessa década, ou talvez um pouco antes, que a teologia alemã está desconfiada, de forma geral, de que uma das fontes utilizadas por Mateus e por Lucas (além do texto de Marcos, a fonte primordial), era um evangelho que não se sabia o nome. Ficou conhecido como Evangelho Q. Este momento é de grandes transformações na Europa, principalmente porque, desde o final do século XVIII, muitas pessoas passaram a ser empregadas nas fábricas e, por consequência, as Igrejas Católicas e Protestantes sentem uma gradativa perda de sua membresia, principalmente nas zonas rurais.
É, também, um momento em que a ciência está em evidência, renovando o mundo e estabelecendo, como já discutimos, novos paradigmas. O livro de Strauss rapidamente se transforma em uma espécie de best-seller (Chevitarese, 2022), em um momento em que o autor tinha como objetivo ser professor ocupando uma cátedra em alguma universidade alemã. Se por um lado ele se torna imensamente popular, por outro as universidades, que eram espaços de ensino e pesquisa, mas dentro do controle da Igreja, inviabilizam sua carreira.
O que ele trazia de novo em seu texto era o entendimento de que toda a narrativa evangélica era marcadamente mitológica, isto é, a figura de Jesus havia sido sacralizada e, por isso, ele havia se transformado em uma espécie de sobre-humano. Essa ideia era considerada por Strauss (2010) um mito, algo construído pelo movimento cristão. Muitos dos autores que haviam escrito e falado sobre Jesus, o fizeram muito tempo depois. Por esses motivos, Strauss tem uma importância fundamental em termos de um entendimento historiográfico de Jesus.
Dessas biografias do século XIX, uma outra se destaca. É a de Ernest Renan, que escreveu em 1863. Era a primeira biografia de Jesus escrita por um católico, membro da Igreja. Embora reconheça certo aspecto mítico nas Escrituras, o autor traz algo que não se vê de maneira evidente como em Reimarus ou Strauss: o Jesus ariano. Uma ideia de que Jesus samais teria sido judeu. Ao contrário, ele descreve a Galiléia como uma província não judaica e, Jesus, sendo galileu, seria um não-judeu, que estaria naquele contexto denunciando as mazelas do judaísmo. Este é um dado que impactou, um dado controverso no ambiente do século XIX. Chegou rapidamente até mesmo no Brasil, impactando um certo público católico. Essa ideia vai servir de base, posteriormente, para a construção do antisemitismo nazista.
De forma geral, o século XIX, devido ao avanço da teoria do conhecimento, bem como da ciência e da razão como valores fundamentais, marcou a percepção sobre Jesus. A percepção dominante se torna laicizada, impactada pelo iluminismo, pelo sentido da razão. Eram percepções muito avessas a uma dimensão teológica, sendo extremamente críticas em relação à documentação.
A impossibilidade da História
O século XX foi marcado pelos escritos dos alemães Albert Schweitzer e Rudolf Buchmann (Chevitarese, 2022). Eles apresentaram olhares extremamente negativos quanto à possibilidade de buscar Jesus, na História, ou pela História.
Do século XVIII até os dias atuais, não relacionar as buscas pelo Jesus histórico com a ciência é cada vez mais impossível. A teologia passa a largo de um tipo de análise verdadeiramente científica da pessoa de Jesus. Elementos caros à teologia, como a fé, não entram necessariamente nas análises que os pesquisadores fazem. Os pioneiros, como Reimarus, ou mesmo os biógrafos de Jesus do Século XIX, como Strauss e Ernest Renan, estavam inseridos em um contexto geral de muito ceticismo em relação às buscas pelo Jesus Histórico. Isso poderia resultar, para católicos e protestantes, uma dessacralização do chamado Cristo. Porém, em 1906, já no século XX, Albert Schweitzer vai escrever o livro “A busca do Jesus Histórico“.
O valor do livro, hoje, é muito mais historiográfico. Ele fez uma análise das mais variadas biografias que surgiram no século XIX, analisando cada uma com comentários com uma análise bem aprofundada. Então, nesse início do século XX, Schweitzer surge com um certo ceticismo quanto à possibilidade de se analisar a figura histórica de Jesus. Foi teólogo, filósofo e músico, tendo sido missionário na África.
Os escritos de Schweitzer definem dois grandes grupos de leitores que consumiam trabalhos sobre a vida de Jesus. De um lado estavam os não cristãos: Jesus, para este nicho específico, não passava de uma espécie de fraude, já que era apresentado de diferentes formas, mas reforçando um certo aspecto de enganador, como um mágico ou um ilusionista. Essas biografias tentavam produzir uma imagem negativa de Jesus. Por outro lado, haviam os leitores cristãos. De alguma forma, estes mostravam uma forte concordância com as mesmas percepções dos autores de biografias que, como Ernest Renan, apresentavam um Jesus não judeu, vindo da Galiléia, um lugar muito miscigenado. Essas biografias tinham, notadamente, um caráter antissemita na medida em que apontavam os judeus como assassinos de Jesus.
É importante destacar que, desde o final do século XVIII, pela primeira vez os seres humanos estão sendo classificados em critérios raciais e, a partir desta perspectiva, Jesus não poderia, de forma alguma, ser judeu, porque os judeus estariam no nível mais baixo desta classificação racial.
De forma geral, essa ideia era hegemônica entre os cristãos. Isso mostra a forma como o cristianismo está articulado, até um certo ponto, com o antissemitismo. Schweitzer mostrava que os cristãos tinham forte concordância com essas perspectivas, embora Jesus tenha nascido e vivido como judeu.
Destaca-se também que Jesus apresentava, segundo as biografias do século XIX, um certo aspecto liberal, tendo em vista que o liberalismo estava no centro da discussão pública da época. Em outros momentos, algumas biografias apresentavam Jesus com um certo viés socialista, consequência da influência do marxismo entre os intelectuais.
De qualquer forma, o maior problema em se produzir uma biografia de Jesus, um mesmo uma historiografia, se encontra no fato de que boa parte de sua história não é documentada. Por isso, nota-se que os interesses dos biógrafos se articulavam, como não poderia deixar de ser, mesmo hoje, com o tempo presente. Por isso Schweitzer desconfiava dessas biografias (Chevitarese, 2022). Para ele, este não era o caminho para se encontrar o Jesus Histórico. Elaborou, então, duas premissas: 1) para ele, diferentemente da maioria das biografias de Jesus no século XIX, Jesus teria uma dimensão escatológica, isto é, havia uma compreensão de que haveria um fim do mundo; e 2) o que foi escrito nos Evangelhos se relacionava com a tradição oral, existindo muitos ditos de Jesus sobre as coisas futuras que se transmitiam oralmente e, se alcançássemos, estaríamos mais perto de nosso objeto. Sem dúvidas, Jesus, em vida, anunciava o fim do mundo e declarava a brevidade da instauração do Reino de Deus, como nos aponta o Evangelho de Marcos, o mais antigo do Novo Testamento: “‘O tempo é chegado’, dizia ele. ‘O Reino de Deus está próximo. Arrependam-se e creiam nas boas novas!’” (Bíblia Sagrada, Nova Versão Internacional, Marcos 1:15).
Schweitzer conclui que as crenças escatológicas de Jesus seriam a chave para a compreensão das suas ações e vida. Para o autor, o Jesus da História era alguém que trabalhava com a ideia de que o mundo iria terminar, uma espécie de profeta do fim do mundo. Vale lembrar que Schweitzer estava escrevendo em 1906, e boa parte dessas ideias foram superadas e já são consideradas ultrapassadas.
Assim, o objetivo central da vida de Jesus, estabelecido por ele mesmo, era o que menos se encontrava nas biografias: a perspectiva do fim. Jesus pregava a intervenção de Deus na história, mas frustrou-se quando se encontrou na cruz, prestes a morrer: “Por volta das três horas da tarde, Jesus bradou em alta voz: ‘Eloí, Eloí, lamá sabactâni?’ que significa: ‘Meu Deus! Meu Deus! Por que me abandonaste?’” (Bíblia Sagrada, Nova Versão Internacional, Marcos 15:34). O resultado das pesquisas de Schweitzer sobre as biografias de Jesus apresentam um certo aspecto de impossibilidade de alcance pleno do Jesus Histórico. Para ele, a importância não estava em Jesus como historicamente conhecido, mas como espiritualmente surgido nas crenças dos homens.
A possibilidade da História
A partir do pessimismo das obras de Schweitzer e Bultmann, as buscas pelo Jesus Histórico tinham sido praticamente interrompidas. Continuaram a se produzir biografias, como se faz até hoje, e a se aprofundar as ideias de um Jesus ariano assimilada pelo partido nazista na Alemanha. Com a ascensão ao poder dos bolcheviques na Rússia, em 1917, e a construção de políticas não comprometidas com as Igrejas, ou mesmo com a religião, dissemina-se uma espécie de ateísmo militante.
A primeira metade do século XX foi marcada pelo aprofundamento da compreensão de Jesus como um ariano, uma ideia que, como vimos, tem raízes no final do século XVIII e passa por todo o século XIX. Isso foi levado ao extremo pelo nazismo e fascismo como política de Estado. Se populariza a figura de Jesus como um não judeu, loiro de olhos azuis, assassinado por judeus, a escória da humanidade.
A partir da ascensão de Hitler, em 1933, essa ideia foi levada ao extremo. Mesmo hoje uma parcela significativa do cristianismo a admite. O Holocausto judaico foi resultado, dentre inúmeros outros fatores, justamente dessa leitura a-histórica de Jesus, além da omissão vergonhosa de muitos teólogos e historiadores que, pelo silêncio em relação a ampliação da divulgação dessas ideias, permitiram com que o Nazismo as promovessem sem muita resistência. Mesmo nos Estados Unidos, e no Brasil, o fundamentalismo reforçava um Jesus descompromissado com a História, entendido apenas sob o ponto de vista teológico exclusivista. A ausência de História é uma das responsáveis pela barbaridade do Holocausto.
Em 1953, Ernst Kasemann, teólogo luterano alemão, fez uma conferência com o título de “O problema do Jesus Histórico“. Discípulo de Rudolf Buttman, de alguma forma ressuscita a busca pelo Jesus Histórico. Ele vai argumentar que a fé cristã – isto é, a ideia de um Jesus exaltado documentado no Novo Testamento –, dava continuidade ao Jesus da História, a partir da relação direta entre a tradição oral e a pessoa concreta de Jesus. A percepção de que a História é fundamental para a compreensão da vida de Jesus volta com muita força.
Partindo do pressuposto de que Jesus, antes de ser teológico ou mítico, abriu-se quatro vertentes de pesquisa contemporâneas, ampliando o leque de interesses, dos mais variados, à sua historicidade, desde a segunda metade do século XX até o século XXI (Chevitarese, 2022).
A primeira vertente é a de re-inserção de Jesus no contexto do judaísmo. Destaca-se o trabalho de David Flusser, Geza Vermes, Gerd Theissen; E. P. Sanders, dentre outros. Esses intelectuais leram Jesus como um judeu que buscou renovar o judaísmo – que Chevitarese (2022) nomeia como movimento de Jesus com Jesus,isto é, com ele vivo, e o movimento de Jesus sem Jesus, gerenciado por seus seguidores após a sua morte –, e que sua escatologia priorizava a restauração do povo judaico.
Uma segunda vertente surge entre ingleses e norte-americanos, substituindo a hegemonia que a escola alemã possuía no assunto até a Segunda Guerra Mundial. Destacam-se os trabalhos de Morton Smith, W. Barnes Tatum, Burton L. Mack, e Jonathan Reed, por exemplo.
A terceira vertente, ou movimento, surge da abertura que vem dominando a segunda metade do século XX, e que entra pelo século XXI, para as fontes não canônicas. Essa vertente entende o novo testamento como uma invenção dos séculos IV e V, dizendo muito mais sobre o contexto histórico, por exemplo dos bispos que dominavam o Império Romano, do que sobre Jesus em si, tomado em sua historicidade. Então, documentos importantes ficaram fora dos textos testamentários, mas cuja datação é do século I, começaram a aparecer nas pesquisas. Evangelicas que os cristãos, em geral, sequer sabiam da existência.
A quarta vertente é a da transdisciplinaridade, fruto do Jesus Seminar, um projeto de reflexões cristológicas fundado em março de 1985 por Robert Funk. Este movimento, dos quais Chevitarese (2022) faz parte, destacou a importância, para o estudo do Jesus Histórico, da Antropologia, Sociologia e Arqueologia. Dois autores se destacam: o próprio Robert Funk, e John Dominic Crossan.
Considerações finais
O objetivo geral deste breve ensaio foi o de apresentar possibilidades de compreensão e pesquisa de Jesus pelo seu caráter histórico, para além do teológico. Como uma pessoa que verdadeiramente existiu, causou impacto e, de qualquer forma que se leia, mudou, em um longo processo, a história da humanidade.
A dimensão teológica, embora tenha se tornado hegemônica neste mesmo processo, não é suficiente, acredito, para esta compreensão. É necessário introduzir a História para dar o pontapé inicial para essa busca. Entendendo a História como a ciência responsável por dar sentido à experiência humana no tempo, torna-se indispensável não se desarticular da educação histórica, e portanto, este artigo se justifica na necessidade de divulgar cada vez mais o conhecimento histórico sobre Jesus. Em ampliar a voz de outros tantos historiadores, especialistas ao redor do mundo, diferentemente deste que vos escreve, que dedicaram suas vidas e carreiras no assunto.
Para além da História, são fundamentais os trabalhos nas áreas da Antropologia, Arqueologia – destaca-se o arqueólogo adventista Rodrigo Silva, que possui trabalhos primorosos no campo do cristianismo, mas que não entraram no curto texto do artigo devido à sua própria especificidade de se limitar à pessoa de Jesus, unicamente, e não ao cristianismo, enquanto movimento religioso na História, de forma geral – e Ciências Sociais. As possibilidades se tornam ainda mais ricas sob a metodologia da interdisciplinaridade.
De qualquer forma, a busca pelo Jesus Histórico enriquece ambos, a ciência e a religião. Torna a ciência aberta ao que se refere à outras formas de articulação e gestão de códigos desenvolvidos pela humanidade ao longo do tempo, como a própria religião, ou mesmo a magia – movimento contrário ao do Estruturalismo, em geral, que se fecha em seus próprios códigos; e torna a religião mais propensa uma fé mais racional – se é que é possível articular estes dois conceitos, ao contrário do entendimento geral de que eles se contrapõe –, ligada ao que verdadeiramente importa: os ensinamentos de Jesus, de forma não fundamentalista.
Referências:
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LESSING, Gotthold Ephraim; VOYSEY, Charles e REIMARUS, Samuel . Fragments From Reimarus: Consisting of Brief Critical Remarks on the Object of Jesus and his Disciples as Seen in the New Testament. Andesite Press, 2017.
STRAUSS, David Friedrich. The Life of Jesus, Critically Examined. New York, Cosimo Classics, 2010.
SCHWEITZER, Albert. A busca do Jesus Histórico. São Paulo, Editora Fonte, 2018.
CHEVITARESE, André. Jesus de Nazaré: o que a História tem a dizer sobre ele. Rio de Janeiro, Editora Menocchio, 2022.
CHEVITARESE, André ; JUSTI, Daniel. O Jesus Ariano. O imaginário e as concepções historiográficas do Jesus Histórico na Alemanha Nazista. Horizonte: Revista de Estudos de Teologia e Ciências da Religião (Online) , v. 15, p. 188-205, 2017.
CHEVITARESE, André. Memória, História e Narrativas Neotestamentárias. Fragmentos de Cultura (Goiânia) , Goiânia, v. 15, n.9, p. 1415-1429, 2006.
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