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por Marcos Manoel Ferreira, especial para o LiceuOnline.

O desassossego da vida convulsionada e da escaramuça sempre árdua e desigual,
restaram algumas reflexões e provocações do velho operário, sobrevivente das migalhas do
pão que a elite amassou, a indignação e as revelações que só quem pensa e gente grande é
que tem. O servilismo voluntário e a sabujice abjeta, abrigo para os covardes, pactuadores
da injustiça, que ao final do expediente, se diz amigo. “O opressor não seria tão forte, se não
tivesse cúmplices entre os próprios oprimidos”. A propósito, qual seria realmente o espírito
do Natal?
A tradição alicerçou em pilares religiosos os históricos festejos natalinos, sob o manto
litúrgico cristão, calcado no que deveria ser, de renascimento, de renovação, de esperança,
de amor, de empatia e de salvação, segundo o proselitismo bíblico. O que em tese, frente
aos princípios os quais a tradição se fez, fortaleceria os laços de união, de respeito, de
solidariedade, de reciprocidade, para além do mês de dezembro e do Natal. Ações e
posturas, que deveriam ser permanentes e sem palanques ou likes. Publicidade de
honestidade, moral e caridade, ou é carência, ou autoafirmação.
Como um despertar de uma sesta, as reminiscências da mais tenra idade, em um
silêncio monástico frente aos dilemas que a vida adulta revelara, uma criança de pés no
chão, como tantas outras, rompeu aquele instante intrigante e bucólico, em uma algazarra
de risos e gritos. Era como se a vida do velho operário, ganhasse por um instante cor e
sentido naquele lampejo saudosista. Com gestos frenéticos e palavras desconexas, minhas
memórias bombardeavam de perguntas, as quais as celebrações natalinas, sempre
inquietaram.
O dia já definhava, a noite caía sobre meus olhos, com turbilhões de interrogações e o
avançar das horas, as verdades em xeque, a existência e os dilemas, habitualmente
remetendo as reflexões que só a vivência contempla. A laboriosa busca pelas respostas que
a vã filosofia indaga ainda mais, a religião com seus mistérios, insiste em não responder.
Utopias, distopias e numa fração de segundos, diante das incontáveis incertezas daquela
criança andrajosa, de pés descalços e com o sorriso que iluminava o ocaso, a infância do
velho operário, emergiu ruidosa. Sob a perspectiva de qualquer pueril que ainda não
aprendeu que a cultura profana capitalista e a sagrada tradição cristã, transformaram o
espírito natalino em valor monetário e a grandeza da fé, em um grande negócio e obrigação,
momento dos fariseus encontrarem a redenção, ao se redimirem de sua arrogância.
Então é Natal! Vamos celebrar! Um brinde à gula, a bebedeira e a esbórnia de muitos
devotos, ao espetáculo pavoroso de irresponsabilidade e violência nas festividades da festa
cristã, ou pagã? A Missa do Galo, perdeu espaço para os fogos de artifícios e as Ceias
nababescas, sob as luzes ornamentando a opulência de palácios — a Casa-Grande —,
financiados por quem não tem onde morar, o que comer ou ao menos um palito de fósforo
que fosse capaz de iluminar a dignidade humana, em meio a tanta miséria. Áreas nobres
enfeitadas pela indigência e o abandono governamental das periferias. Vamos celebrar!
Ingenuamente, acreditei um dia no “Coelhinho” da Páscoa, de “olhinhos” vermelhos e
orelhas grandes, que incondicionalmente trazia ovos deliciosos de chocolates para todas as
crianças. Inclusive, para as pobres, pretas, anônimas, cristãs ou não e que quase sempre,
vivem penduradas nas encostas movediças do abandono social e estatal. O Natal dos
indigentes, dura o ano todo, de Presépios sob viadutos, mangedouras em avenidas, de
Marias e Josés, apinhados em morros, nas filas dos ossos para a Ceia, bancada pela
incompetência e a hipocrisia eviterna! O rubro do sangue derramado pela indiferença e o
abandono; as luzes brilhantes e coloridas, iluminadas pelo giro flex da cortesia policial; os
fogos de artifícios são as bombas de gás e os tiros do Estado, que enfeitam vielas, os becos
nos morros e das senzalas nas calçadas apinhadas de “cidadãos”, que em tese, igualmente,
“filhos de Deus”. Isso explica a grande inspiração em Schubert, que iluminou Herivélton
Martins em “Ave Maria no Morro”!
As celebrações natalinas, sempre tão iluminadas, festivas e coloridas, se na rua em
que moro — mesmo pagando taxa de iluminação pública — nem poste tem? Será esse seria
o motivo pelo qual Papai Noel não visita os miseráveis, os invisibilizados das regiões
periféricas? Temerário pelos assaltos constantes ou o Natal é para alguns agraciados pelo
capital e o consumismo? Para que a ternura do simbolismo não se tornasse fumaça em
instantes, mesmo diante das percepções dolorosas, o agora, percebo que caí no conto do
vigário! As valas comuns da minha rua, as chacinas e a cumplicidade de gente graúda, as
milícias e o poder paralelo, o silêncio e a omissão, banqueteando com famélicos nos lixões,
aquele que o bom velhinho de “verdade” — roupas vermelhas, rechonchudo, com ares de
bonachão, trenó e puxado por renas brilhantes —, alguns competentes homens públicos e
fervorosos religiosos, celebram sua redenção.
O tempo roubou minha infância, como a religião dos charlatões, abusadores e
hipócritas, roubaram minha fé, com ela, minha inocência. Descobri que o “Coelhinho” da
Páscoa e o Papai Noel, estão para a tradição cristã, como Saci Pererê e o Negrinho do
Pastoreio, estão para a cultura popular brasileira, na mesma dimensão de importância e
realidade. A intolerância e a ignorância, encarregam do restante. Crianças pobres, quase
sempre sem ter o que comer na Ceia de Natal! Confraternizam com os ébrios, solidários na
indiferença social, o clima festivo lúgubre que celebram todos os dias, compartilham o
espetáculo dos indigentes e a grande mesa do abandono, fartando-se do banquete dos
renegados, é o que lhes restaram do verdadeiro e auspicioso espírito de Natal.
Portanto, o dezembro enternecido e as confraternizações empresariais, eviscera uma
constrangedora realidade, em que, por inúmeras vezes, os trabalhadores são
insistentemente ignorados e hostilizados o ano todo. Mas, chegou a hora da redenção
natalina dos algozes, dos fariseus, abrirem as portas da Casa-Grande para o desfile
monumental dos operários insepultos e detestáveis. Do melancólico patíbulo à partilha da
mesa com quem me detesta, laborei o ano todo para bancar a Confraternização, que no dia
a dia, me foi negado até o “cafezinho”, regado a farelo de pão, em que as luzes da ribalta,
fez brilhar o carrasco, enquanto na fétida masmorra dos invisibilizados, fui apenas um
recurso humano. A propósito, qual seria realmente o espírito do Natal?

Sobre o(a) Autor(a)

Marcos Manoel Ferreira

Marcos Manoel Ferreira, Professor, Pedagogo, Historiador, Escritor. Pedagogo com Habilitação em História da Educação Brasileira; Historiador; Especialista em História e Cultura Afro-brasileira e Africana e Mestre em História – Cultura, Religião e Sociedade. [email protected]
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