Há 58 anos, tramado nas alcovas das casernas, típico dos covardes e traidores — como isso nos é familiar — no dia 31 de março de 1964, o Brasil numa típica demonstração de que “nada seria tão ruim que não pudesse piorar”, imergiu num pesadelo que durou 21 anos, tiranizados por ardilosos e sob o manto dos “salvadores” da pátria. O ocaso da jovem e frágil democracia brasileira, ainda cambaleante, golpeada pelos fuzis da insensatez, desvelando a face oculta de um regime sanguinário, comandado pela truculência e sob a égide de um discurso mentiroso, hipócrita e sombrio. “Todo povo é uma besta que se deixa levar pelo cabresto” foram com essas palavras, que o sabujo regime a serviço do imperialismo estadunidense, referiam-se aos brasileiros, proferidas pelo arauto da moral, o subserviente general João Figueiredo.
No contexto mundial, a Guerra Fria (1945 – 1991), tornou-se um ingrediente determinante para o panorama que se descortinaria e a América Latina, seria vítima da mesma ameaça. Numa queda de braço histórica e ideológica entre os Estados Unidos e URSS, numa guerra de narrativas, psicológica, de ameaças, de propaganda, em nome de interesses escusos, políticos, militares, ideológicos e econômicos, financiaram e semearam golpes militares e ditaduras, além de conflitos por todo mundo — América Latina, Brasil e seus lambe-botas.
A Guerra Fria, constituiu-se, na verdade, em uma “Guerra Quente”! Os bajuladores dos Estados Unidos e os conservadores equivocados de plantão, numa demonstração dantesca de imbecilidade, desprezo pela democracia e desconhecimento total do que vem a ser a essência da esquerda, embarcaram no discurso paranoico fascista da direita e extrema-direita, sob os zurros da ameça “vermelha”, do “bicho-papão” e com um plano diabólico, que pretendia tomar o poder no país e no mundo. O eviterno mantra proselitista do capitalismo estadunidense, fomentando as “Teorias da Conspiração Comunistas”, do mundo paralelo dos negacionistas e obscurantistas.
Dentro deste contexto internacional, em um discurso histórico, o então Presidente da República — eleito pelo voto popular — João Belchior Marques Goulart, em 13 de março de 1964, em um comício realizado na Central do Brasil, no Rio de Janeiro diante de 150 mil pessoas, ressaltou que o “destino” do país traçado pelos Estados Unidos, começou a ser colocado em prática.
Diante das Reformas de Base de Jango — estruturais, que incluíam os setores educacional, político, fiscal e agrário —, permitindo por exemplo, a desapropriação de terras numa faixa de dez quilômetros às margens de rodovias, ferrovias e barragens e transferindo para a União o controle de cinco refinarias de petróleo que operavam no país. O sinal de alerta para a execução do golpe civil-militar — que alguns incapacitados cognitivamente, insistem em chamar de “Revolução” — estava ativado e sob os clamores dos adeptos a servidão voluntária, em Étienne de La Boétie.
As propostas de Goulart, frente a crise pela qual atravessava o país, buscavam possibilidades para o combate do abismo social brasileiro, sob outras perspectivas ideológicas, atentavam contra os velhos anseios da classe média e das elites urbana e rural, já que estava em curso, proposituras de reformas sociais, econômicas, bancárias, educacionais e um conflito de interesses. Antecipou a reforma urbana e a implementação de um imposto sobre grandes fortunas, o que novamente, forças ligadas ao capital e à terra, internas e externas, descortinavam um golpe ao Estado de direito. Obviamente, desagradando muita gente poderosa, historicamente, milionários de origem duvidosa e a velha classe média que pensa que é rica. Grileiros, latifundiários, banqueiros estrangeiros, nacionais e a miséria do trabalhador brasileiro, que fomentavam o famigerado apetite do capital estrangeiro.
Jango, era visto e acusado pela “direita radical e conservadora” brasileira, bem como pelo governo dos Estados Unidos de Kennedy e Johnson, de ser simpatizante da esquerda, de aproximação com a China de Mao e a URSS de Khruschev, além de adotar uma série de medidas internas, que feriam diretamente os interesses de alguns grupos constituídos de hienas e urubus famintos, que banqueteavam e banqueteiam, infestavam e infestam o país.
Diante da “ameaça” iminente do “inimigo” — o comunismo e Goulart —, alguns segmentos organizados da sociedade, clero, empresariado, setores políticos conservadores, militares e espiões estadunidenses infiltrados no Brasil, organizaram a “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”. Levando às ruas mais de um milhão de pessoas com o intuito de derrubar o governo do então presidente, eleito democraticamente, como vice de Jânio Quadros. “Marcha da Família” foi o nome comum de uma série de manifestações públicas ocorridas entre 19 de março e 8 de junho de 1964, usando o discurso da moral religiosa, como cabo eleitoral. Vale destacar, em caráter de utilidade pública e histórica, que no Brasil, nunca houve um golpe de esquerda, ou seja, a grande ameaça “vermelha” verborragia pela direita, se efetivaram por suas próprias mãos, quase sempre, manchadas de sangue: 1889, 1930, 1937, 1964.
A primeira das 49 marchas aconteceu no dia 19 de março — dia de São José, padroeiro das famílias — em São Paulo e congregou entre 300 e 500 mil pessoas. Ela foi organizada por grupos como Campanha da Mulher pela Democracia (CAMDE), União Cívica Feminina (UCF), Fraterna Amizade Urbana e Rural, Sociedade Rural Brasileira, dentre outros grupos, recebendo também o apoio da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP) e do controverso Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES). Na ocasião, foi distribuído o “Manifesto ao povo do Brasil” pedindo o afastamento de Jango da presidência. Após a deposição do presidente pelos militares em 31 de março de 1964, as marchas passaram a se chamar “Marchas da Vitória”. A maior delas, articulada pelo CAMDE no Rio de Janeiro, levou cerca de um milhão de pessoas às ruas em 2 de abril de 1964. Seria cômico se não fosse trágico, atrelar a democracia ao regime militar. Parece uma grande piada de muito mal gosto. O resultado, foi o pior possível, muitos desses grupos civis e religiosos que apoiaram o golpe, mais tarde, tornaram-se suas maiores vítimas, frente a uma das mais impiedosas ditaduras da América Latina, nas décadas de 60, 70 e 80 do século passado.
Ironicamente, da “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”, só permaneceu a “Marcha”. A ordem unida, é o que de “melhor” os militares conseguiram fazer; a “Família”, desmantelou-se, diante dos inúmeros assassinatos e o terrorismo de Estado instalado, em nome da liberdade e da democracia, prisões e desaparecimentos de centenas de cidadãos brasileiros, deixando as famílias aos pedaços; “Deus”, diante da parvoíce triunfante e da truculência governamental, deve ter dito: “me inclua fora dessa”. Já que chocaram o ovo da serpente, agora, vão atrás do soro antiofídico. Quanto a “Liberdade…” Ah! A Liberdade! Poeticamente, liberdade! Como poetizou a grande Cecília Meireles: “liberdade é uma palavra que o sonho humano alimenta, não há ninguém que explique e ninguém que não entenda”. Foi a resposta da eficiência moral e intelectual, de um governo reacionário e imoral, que contou com o apoio de muita gente graúda e cegas, que caíram no mesmo conto da sereia de outras ditaduras pelo mundo — seja de direita ou esquerda, vale ressaltar.
George Santayana, afirmou que “aqueles que não conseguem lembrar o passado está condenado a repeti-lo”. Exatamente neste contexto, que tenho acompanhado com certa apreensão, alguns murmurinhos, articulações e tentativas por parte de alguns segmentos, de se organizarem aos moldes dos anos 60, com novas “Marchas da Família”, sob o pretexto de que só os militares e obviamente, um regime militar, seriam capazes dar “jeito” no Brasil. A ignorância e a amnésia histórica, pode colocar o país diante de velhos e incompetentes sanguinários. “Um povo que não sabe nem escovar os dentes não estão preparados para votar”, afirmou o general e presidente do Brasil, João Baptista de Oliveira Figueiredo.
Afirmar que durante os “Anos de Chumbo” no país, a violência, a miséria e a corrupção foram menores, é um grande engodo e desconhecimento histórico dantesco. É uma temeridade, para não dizer, imbecilidade. Quando Joseph Goebbels disse, “uma mentira repetida mil vezes torna-se uma verdade”, foi assim, que o “marqueteiro” do austríaco naturalizado alemão Adolf Hitler, possibilitou sua ascensão, com apoio da elite e do povo, mais tarde, a queda do Terceiro Reich e a ressaca.
Aqui, não seria diferente. É preciso compreender, que durante o período ditatorial brasileiro de 1964 a 1985, advindo do Golpe Civil-Militar, a censura e as atrocidades, eram as principais e inteligentes armas do regime. A imprensa não podia noticiar, denunciar e nem informar o que o regime não desejasse. Ou seja, foram 21 anos camuflando a realidade e empulhando muita gente, que pelo visto, continuam até hoje.
Veículos de imprensa e comunicações — escrita, falada, TV, rádio — eram severamente fiscalizadas pelos órgãos de censura e o que desagradavam, não eram noticiados, não eram permitidos pelo Governo da “Família com Deus pela Liberdade” eram arbitrariamente censuradas. Jornalistas perseguidos, presos e mortos. Como o caso emblemático do jornalista da TV Cultura, Vladimir Herzog, assassinado covarde e brutalmente sob tortura nas dependências do DOI-CODI em São Paulo, em 25 de outubro de 1975, tornando-se internamente, um divisor de águas no regime, imposto pelo General Geisel.
Portanto, os índices eram falsos, maquiados e duvidosos. Por isso e por outras, que obviamente as estatísticas de violência e corrupção, eram bem menores, ou praticamente, “inexistentes”. É exatamente isso, que muita gente fervorosamente tem defendido e querendo de novo! A insanidade e a estupidez dos ignorantes, talvez sejam as maiores ameaças deste país. Uma assustadora disposição ao servilismo, a subserviência e a “banalidade do mal”, em Hannah Arendt.
Não podemos esquecer, que o retrocesso e a repressão, não ficaram restritos ao âmbito político e social. O golpe atingiu diretamente a cultura nacional. O que tínhamos de melhor em produção artística, bem como os maiores intelectuais das mais diversas áreas deste país, foram brutal e severamente perseguidos, outros com mais “sorte”, exilados, jogados ao ostracismo. Brasileiros, como Caetano Veloso, Henfil, Gilberto Gil, Maria Bethânia, Geraldo Vandré, Chico Buarque, Dias Gomes entre tantos outros.
O que minimizará os problemas do país, com certeza, não será força e a “eficiência” de uma ditadura, militar ou não, o terrorismo típico dos regimes ditatoriais, de exceção — direita ou esquerda — e as constantes violações dos Direitos Humanos, com certeza, não será nessa direção. As vozes silenciadas e as memórias dolorosas, precisam ser lembradas e bradadas. O caminho da mudança desse país, é a educação, a construção de cidadãos mais críticos e conscientes, saúde, saneamento básico, empregos, justiça, o cumprimento das leis com igualdade e equidade, o combate à imoralidade e aos privilégios concedidos para classe política e seus bajuladores infames. O fim do Foro Privilegiado, exatamente para quem — em tese — não teria nada para esconder ou temer, prerrogativa legal, mas, imoral.
Incompetência e corrupção, devem ser colocados no mesmo patamar de crimes hediondos, para quem ocupa cargo público ou não. Leandro Karnal disse algo que vale a pena refletirmos. “Não existe país no mundo em que o governo seja corrupto e a população honesta e vice-versa”.
Assim, combater a violência e a miséria, não será com mais uma ditadura. Não podemos esquecer esse triste e vergonhoso passado recente de dor e mordaça. Como não podemos esquecer também, a escravidão, o Nazismo, o “Pau de Arara”, o atentado do Rio Centro, o DOI-CODI, o Caso Zuzu Angel, AI-5, a Casa da Morte, Honestino Guimarães, Rubens Paiva e tantos outros. O sangue vertido na Via Crúcis dos brasileiros, pela truculência policial, numa espécie de necropolítica, executadas nos porões fétidos da ditadura, não podem se transformar em apologia, nem muito menos, numa amnésia nacional!
Ainda que cambaleante, a democracia e a liberdade de imprensa, de expressão e pensamento, continuam sendo o único caminho a ser trilhado. Defender a volta de um regime ditatorial, ou esquecer nosso passado recente, além de criminoso, é ir à contramão do progresso, da esperança de um país melhor e da construção de uma democracia sólida! Não adianta criticar a ditadura de Cuba, da Coreia do Norte, da Venezuela e defender a da Arábia Saudita, tecer elogios a Pinochet, ou defendê-la no Brasil. Ditadura, nunca mais. Façamos da Memória, o maior Patrimônio de um povo.
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