skip to Main Content

por Paulo Winicius Teixeira de Paula, especial para o LiceuOnline.

Há figuras cuja obra atravessa disciplinas e épocas porque se alimenta de um mesmo núcleo ético-político: a recusa da barbárie e a aposta na dignidade humana. Horieste Gomes, hoje com 92 anos, — geógrafo e historiador, professor, militante comunista, perseguido e exilado — é uma dessas presenças. Sua trajetória, do magistério no Lyceu de Goiânia ao exílio em Lund (Suécia) e ao retorno com a Anistia, sintetiza uma experiência rara no Brasil: o intelectual que pensa o território e a temporalidade como história viva das classes e, ao mesmo tempo, inscreve a própria vida nas lutas que analisa. Ler Horieste é reencontrar, sob perspectiva marxista, a inseparabilidade entre a crítica do presente, a memória dos vencidos e a educação como prática de liberdade.

Formado na escola do trabalho e da militância — ligado ao PCB (Partido Comunista Brasileiro) desde os anos 1950 — Horieste ingressou na UFG (Universidade Federal de Goiás) em 1963, no Centro de Estudos Brasileiros (CEB). Ali se consolidou uma marca que o acompanharia por toda a vida: a recusa do tecnicismo e a leitura do território como síntese de relações sociais, articulando Brasil e Goiás, totalidade e particularidade. Não por acaso, o CEB foi lembrado como um “ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros) em miniatura”, espaço de formação nacionalista em tempos de efervescência política. Dessa fase nasceram obras pioneiras como Introdução à Geografia de Goiás – A Terra (1966) e Geografia Socioeconômica de Goiás (1969), que abriram caminho para uma geografia social atenta às contradições da modernização goiana e para o diálogo com a tradição crítica de Josué de Castro.

O golpe de 1964 interrompeu esse processo: o CEB foi extinto, professores foram vigiados e expurgados, e instaurou-se a perseguição aos intelectuais. Horieste resistiu denunciando a supressão das disciplinas críticas e a fragmentação da universidade. Em 1972, como dirigente do PCB em Goiás, foi preso e demitido pelo Decreto 477, experiência que depois transformaria em testemunho histórico em Cela 14 – Militância, Prisão e Liberdade (2009). A prisão, a tortura e o exílio foram vividos não como tragédia privada, mas como momento de formação política — um aprendizado sobre a força do coletivo e a importância da memória em tempos de silenciamento.

Durante o exílio (1977–1980) em Lund, Horieste dialogou com as correntes internacionais da geografia crítica e aprofundou a reflexão sobre produção, trabalho e técnica numa perspectiva histórica. Ao retornar com a Anistia, reassumiu o papel de professor e pesquisador, consolidando um marxismo geográfico que compreendia o território como produção social e o espaço como campo de lutas. A partir de então com sua dedicação à produção teórica surgem obras como A Produção do Espaço Geográfico no Capitalismo (1990), Reflexões sobre Teoria e Crítica em Geografia (1991), Geografia Goiás–Tocantins (1993, em coautoria com Antônio Teixeira Neto) e A Produção Geográfica de Goiás (1999). São livros que unem rigor metodológico e experiência empírica, ponte entre universidade e realidade social.

Mas Horieste também é historiador e memorialista. Sua obra A coluna Miguel Costa/Prestes em Goiás (2017, em coautoria com Francisco Montenegro) restitui a dimensão territorial da epopeia revolucionária dos anos 1920, enquanto Memórias da Campininha (2000), Lembranças da Terrinha (2002) e Reminiscências da Campininha: 200 anos, 1810-2010 (2012) constroem a cartografia afetiva de um bairro popular que forjou sua formação ética e política. É nesse bairro de Goiânia, Campinas, que Horieste reencontra a história do trabalho, do futebol, da vida cotidiana — a história não oficial, dos que constroem a cidade com suas próprias mãos. Seu olhar sobre a Campininha é de um homem que nunca abandonou o lugar de onde veio nem a classe que o formou.

Esse fio se renova em A Saga do Atlético Goianiense (2015) e  Atlético, Campinas e Accioly — Memórias da Força Quente de um Dragão (2025) (organizado por Horieste Gomes, Paulo Winícius Teixeira de Paula, e Ângela Mascarenhas). Reunindo textos, crônicas e fotografias, a obra é testemunho da cidade popular, da força comunitária e da tradição atleticana como expressões de identidade e resistência. Nela, a memória urbana, o futebol e a história local se entrelaçam, reafirmando Horieste como intelectual marxista, geógrafo, historiador e guardião das vozes que o “progresso” costuma calar. Participar dessa organização, para mim, foi um exercício de aprendizado e reverência — a oportunidade de partilhar com meu mestre o ofício de fazer da memória uma forma de luta.

E em seus 92 anos, Horieste Gomes, mantêm-se como referência para os que desejam pesquisar sobre História e Geografia de Goiás, História de Goiânia e do Bairro de Campinas, História do Atlético Clube Goianiense, Lutas Sociais e Ditadura, entre outros temas. Com uma energia e lucidez inspiradora nos presenteou recentemente com a obra Braços e Mentes que construíram Goiânia (2023), e lança no final de 2025 os livros Brincadeiras de Crianças na Campininha das Flores e Os Bravateiros de Campinas-Goiânia, tendo ainda um livro no prelo no qual analisa o desenvolvimento da humanidade para publicação em 2026.

Por que ler Horieste Gomes hoje? Porque sua obra conecta universidade e povo, história política e geografia econômica, memória da repressão e defesa da educação pública, direito à cidade e questão ambiental — um fio ético e teórico indispensável num tempo de negacionismos. Porque seu método recusa tanto o fatalismo quanto o voluntarismo: historiciza o território, mapeia as relações de classe, identifica projetos em disputa e reconstrói tramas locais em diálogo com a totalidade. E porque sua vida é exemplo de ofício: professor que forma, pesquisador que publica, militante que organiza, cronista que celebra a cultura popular.

Não é casual, portanto, que seja lembrado ao lado de educadores e pensadores que universalizam o regional: Josué de Castro, Milton Santos, Aziz Ab’Sáber, e que sua obra seja destacada por antropólogos como Altair Sales Barbosa (IGPA-PUC-GO) e geógrafos de peso como Ariovaldo Umbelino (USP), Francisco Mendonça (UFPR), Ruy Moreira (UFF), Eguimar Felicio (UFG) e Tadeu Arrais (UFG). A deferência e a semelhança não se dão pelo cânone, mas no modo de operar: partir do chão histórico concreto, daquilo que o capital transforma, destrói e cria, e devolver como conceito, como mapa, como programa. Horieste faz isso com Goiás e, ao fazê-lo, pensa o Brasil: da “política da fronteira” à urbanização desigual; da “modernização” que expulsa ao direito à cidade; da devastação ambiental ao planejamento democrático do território.

Quem é Horieste Gomes? Um intelectual público de raiz marxista, cuja biografia se confunde com a história de Goiás e cuja obra permanece indispensável para cartografar o Brasil real — com rigor, memória e esperança. Seus mapas não se deixam capturar pela mercadoria: são mapas de lutas, de pertencimento e de futuro.

Para saber mais: 

  • Introdução à Geografia de Goiás – A Terra (1966).
  • Geografia Socioeconômica de Goiás (1969).
  • Geografia e planejamento (1981).
  • Geografia e Questão ambiental (1988)
  • A produção do espaço geográfico no capitalismo (1990).
  • Reflexões sobre teoria e crítica em Geografia (1991).
  • Geografia: Goiás-Tocantins (1993).
  • Caminhos para Re (Construção) do Homem (1997).
  • A produção geográfica de Goiás (1999).
  • Memórias da Campininha (2000).
  • Lembranças da Terrinha (Campininha) (2002).
  • Cela 14 – Militância, Prisão e Liberdade (2009).
  • Reminiscências da Campininha: 200 anos, 1810-2010 (2012)
  • A Saga do Atlético Goianiense (2015)
  • A coluna Miguel Costa/Prestes em Goiás (2017)
  • Braços e Mentes que construíram Goiânia (2023)
  • Atlético, Campinas e Accioly — Memórias da Força Quente de um Dragão (2025)
  • Brincadeiras de Crianças na Campininha das Flores (2025)
  • Os Bravateiros de Campinas-Goiânia (2025)

Referências e análises sobre Horieste Gomes:

  • BARBOSA, Altair Sales. “Horieste Gomes, o humilde pensador.” Jornal Opção – 30 ago. 2023.
  • ENTREVISTA ANPEGE. “Horieste Gomes: [entrevista]”. Revista da ANPEGE, v. 18, n. 35, 2022.
  • FREITAS, Weder David de. Geografia, militância e marxismo: a trajetória de Horieste Gomes e sua participação no Movimento de Renovação da Geografia Brasileira. Tese, UFG, 2014.

 

 

 

 

 

 

Imagem de capa: ChatGPT.

Sobre o(a) Autor(a)

Paulo Winicius Teixeira de Paula

Doutorando em História Econômica pela Universidade de São Paulo (USP), Mestre em História pela Universidade Federal de Goiás (UFG) (2014),Especialista em Docência no Ensino Superior pela Faculdade Brasileira de Educação e Cultura-FABEC (2010), Licenciado (2011) e Bacharel (2008) em Historia pela Universidade Federal de Goiás(UFG). Organizador dos Livros " Dirce Machado: a saga de uma camponesa da luta de Trombas e Formoso (2023) " e "Atlético, Campinas e Accioly — Memórias da Força Quente de um Dragão (2025)".
Publicado no Liceu Online por:

Edição - Liceu Online

Revista online de Humanidades. @liceuonline

Comentários...

Leia também...

Back To Top
Política de Privacidade

Leia nossa Política de Privacidade em nossa página clicando aqui.

Cookies estritamente necessários

O cookie estritamente necessário deve estar sempre ativado para que possamos salvar suas preferências de configuração de cookies.