Há figuras cuja obra atravessa disciplinas e épocas porque se alimenta de um mesmo núcleo ético-político: a recusa da barbárie e a aposta na dignidade humana. Horieste Gomes, hoje com 92 anos, — geógrafo e historiador, professor, militante comunista, perseguido e exilado — é uma dessas presenças. Sua trajetória, do magistério no Lyceu de Goiânia ao exílio em Lund (Suécia) e ao retorno com a Anistia, sintetiza uma experiência rara no Brasil: o intelectual que pensa o território e a temporalidade como história viva das classes e, ao mesmo tempo, inscreve a própria vida nas lutas que analisa. Ler Horieste é reencontrar, sob perspectiva marxista, a inseparabilidade entre a crítica do presente, a memória dos vencidos e a educação como prática de liberdade.
Formado na escola do trabalho e da militância — ligado ao PCB (Partido Comunista Brasileiro) desde os anos 1950 — Horieste ingressou na UFG (Universidade Federal de Goiás) em 1963, no Centro de Estudos Brasileiros (CEB). Ali se consolidou uma marca que o acompanharia por toda a vida: a recusa do tecnicismo e a leitura do território como síntese de relações sociais, articulando Brasil e Goiás, totalidade e particularidade. Não por acaso, o CEB foi lembrado como um “ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros) em miniatura”, espaço de formação nacionalista em tempos de efervescência política. Dessa fase nasceram obras pioneiras como Introdução à Geografia de Goiás – A Terra (1966) e Geografia Socioeconômica de Goiás (1969), que abriram caminho para uma geografia social atenta às contradições da modernização goiana e para o diálogo com a tradição crítica de Josué de Castro.
O golpe de 1964 interrompeu esse processo: o CEB foi extinto, professores foram vigiados e expurgados, e instaurou-se a perseguição aos intelectuais. Horieste resistiu denunciando a supressão das disciplinas críticas e a fragmentação da universidade. Em 1972, como dirigente do PCB em Goiás, foi preso e demitido pelo Decreto 477, experiência que depois transformaria em testemunho histórico em Cela 14 – Militância, Prisão e Liberdade (2009). A prisão, a tortura e o exílio foram vividos não como tragédia privada, mas como momento de formação política — um aprendizado sobre a força do coletivo e a importância da memória em tempos de silenciamento.
Durante o exílio (1977–1980) em Lund, Horieste dialogou com as correntes internacionais da geografia crítica e aprofundou a reflexão sobre produção, trabalho e técnica numa perspectiva histórica. Ao retornar com a Anistia, reassumiu o papel de professor e pesquisador, consolidando um marxismo geográfico que compreendia o território como produção social e o espaço como campo de lutas. A partir de então com sua dedicação à produção teórica surgem obras como A Produção do Espaço Geográfico no Capitalismo (1990), Reflexões sobre Teoria e Crítica em Geografia (1991), Geografia Goiás–Tocantins (1993, em coautoria com Antônio Teixeira Neto) e A Produção Geográfica de Goiás (1999). São livros que unem rigor metodológico e experiência empírica, ponte entre universidade e realidade social.
Mas Horieste também é historiador e memorialista. Sua obra A coluna Miguel Costa/Prestes em Goiás (2017, em coautoria com Francisco Montenegro) restitui a dimensão territorial da epopeia revolucionária dos anos 1920, enquanto Memórias da Campininha (2000), Lembranças da Terrinha (2002) e Reminiscências da Campininha: 200 anos, 1810-2010 (2012) constroem a cartografia afetiva de um bairro popular que forjou sua formação ética e política. É nesse bairro de Goiânia, Campinas, que Horieste reencontra a história do trabalho, do futebol, da vida cotidiana — a história não oficial, dos que constroem a cidade com suas próprias mãos. Seu olhar sobre a Campininha é de um homem que nunca abandonou o lugar de onde veio nem a classe que o formou.
Esse fio se renova em A Saga do Atlético Goianiense (2015) e Atlético, Campinas e Accioly — Memórias da Força Quente de um Dragão (2025) (organizado por Horieste Gomes, Paulo Winícius Teixeira de Paula, e Ângela Mascarenhas). Reunindo textos, crônicas e fotografias, a obra é testemunho da cidade popular, da força comunitária e da tradição atleticana como expressões de identidade e resistência. Nela, a memória urbana, o futebol e a história local se entrelaçam, reafirmando Horieste como intelectual marxista, geógrafo, historiador e guardião das vozes que o “progresso” costuma calar. Participar dessa organização, para mim, foi um exercício de aprendizado e reverência — a oportunidade de partilhar com meu mestre o ofício de fazer da memória uma forma de luta.
E em seus 92 anos, Horieste Gomes, mantêm-se como referência para os que desejam pesquisar sobre História e Geografia de Goiás, História de Goiânia e do Bairro de Campinas, História do Atlético Clube Goianiense, Lutas Sociais e Ditadura, entre outros temas. Com uma energia e lucidez inspiradora nos presenteou recentemente com a obra Braços e Mentes que construíram Goiânia (2023), e lança no final de 2025 os livros Brincadeiras de Crianças na Campininha das Flores e Os Bravateiros de Campinas-Goiânia, tendo ainda um livro no prelo no qual analisa o desenvolvimento da humanidade para publicação em 2026.
Por que ler Horieste Gomes hoje? Porque sua obra conecta universidade e povo, história política e geografia econômica, memória da repressão e defesa da educação pública, direito à cidade e questão ambiental — um fio ético e teórico indispensável num tempo de negacionismos. Porque seu método recusa tanto o fatalismo quanto o voluntarismo: historiciza o território, mapeia as relações de classe, identifica projetos em disputa e reconstrói tramas locais em diálogo com a totalidade. E porque sua vida é exemplo de ofício: professor que forma, pesquisador que publica, militante que organiza, cronista que celebra a cultura popular.
Não é casual, portanto, que seja lembrado ao lado de educadores e pensadores que universalizam o regional: Josué de Castro, Milton Santos, Aziz Ab’Sáber, e que sua obra seja destacada por antropólogos como Altair Sales Barbosa (IGPA-PUC-GO) e geógrafos de peso como Ariovaldo Umbelino (USP), Francisco Mendonça (UFPR), Ruy Moreira (UFF), Eguimar Felicio (UFG) e Tadeu Arrais (UFG). A deferência e a semelhança não se dão pelo cânone, mas no modo de operar: partir do chão histórico concreto, daquilo que o capital transforma, destrói e cria, e devolver como conceito, como mapa, como programa. Horieste faz isso com Goiás e, ao fazê-lo, pensa o Brasil: da “política da fronteira” à urbanização desigual; da “modernização” que expulsa ao direito à cidade; da devastação ambiental ao planejamento democrático do território.
Quem é Horieste Gomes? Um intelectual público de raiz marxista, cuja biografia se confunde com a história de Goiás e cuja obra permanece indispensável para cartografar o Brasil real — com rigor, memória e esperança. Seus mapas não se deixam capturar pela mercadoria: são mapas de lutas, de pertencimento e de futuro.
Para saber mais:
- Introdução à Geografia de Goiás – A Terra (1966).
- Geografia Socioeconômica de Goiás (1969).
- Geografia e planejamento (1981).
- Geografia e Questão ambiental (1988)
- A produção do espaço geográfico no capitalismo (1990).
- Reflexões sobre teoria e crítica em Geografia (1991).
- Geografia: Goiás-Tocantins (1993).
- Caminhos para Re (Construção) do Homem (1997).
- A produção geográfica de Goiás (1999).
- Memórias da Campininha (2000).
- Lembranças da Terrinha (Campininha) (2002).
- Cela 14 – Militância, Prisão e Liberdade (2009).
- Reminiscências da Campininha: 200 anos, 1810-2010 (2012)
- A Saga do Atlético Goianiense (2015)
- A coluna Miguel Costa/Prestes em Goiás (2017)
- Braços e Mentes que construíram Goiânia (2023)
- Atlético, Campinas e Accioly — Memórias da Força Quente de um Dragão (2025)
- Brincadeiras de Crianças na Campininha das Flores (2025)
- Os Bravateiros de Campinas-Goiânia (2025)
Referências e análises sobre Horieste Gomes:
- BARBOSA, Altair Sales. “Horieste Gomes, o humilde pensador.” Jornal Opção – 30 ago. 2023.
- ENTREVISTA ANPEGE. “Horieste Gomes: [entrevista]”. Revista da ANPEGE, v. 18, n. 35, 2022.
- FREITAS, Weder David de. Geografia, militância e marxismo: a trajetória de Horieste Gomes e sua participação no Movimento de Renovação da Geografia Brasileira. Tese, UFG, 2014.
Imagem de capa: ChatGPT.









