Entre 1936 e 1937, o filósofo e historiador literário húngaro György Lukács teceu, através da obra O romance histórico, o principal referencial teórico dedicado a pensar o romance histórico para além de um gênero literário. Para Lukács, o Romance Histórico Realista é uma forma de composição literária aflorada pela emergência de uma concepção de história específica e circunscrita a um tempo e espaço que ofereceram condições para que o “eu” se identificasse como tal. Quase um século depois, estudiosos da história e da literatura continuam recorrendo a essa teoria em busca do vínculo entre o escritor, um indivíduo de seu tempo, e a obra, atemporal enquanto forma de arte, mas concebida sob demandas reais, latentes, coetâneas.
Antes de nos debruçarmos sobre a complexa teoria do Romance Histórico Realista, é fundamental que compreendamos quem foi seu criador. Além do interesse de Lukács pela literatura anteceder em muito a redação desta obra, as teorias lukacsianas carregam muitas características do meio em que foram pensadas, a União Soviética, fazendo com que noções da trajetória do autor enriqueçam o entendimento do assunto.
György Lukács nasceu em Budapeste, capital da Hungria, em 1885, e faleceu na mesma cidade em 1971, aos 86 anos. Integrante do Partido Comunista desde 1918, Lukács foi declaradamente um marxista. Viveu na União Soviética por acreditar no socialismo como forma de governo e pensou a política, filosofia e literatura sob bases marxistas, tratando de temas como a crítica do capital, luta de classes e ascensão da classe trabalhadora, mas pensando criticamente os rumos tomados pela União Soviética, sobretudo durante o regime stalinista. Sua vinculação à ideologia marxista não resultou, portanto, em um dogmatismo inabalável, mas na crítica ativa e consciente de seu tempo, características que permearam sua produção intelectual. História e consciência de classe, publicada em 1923, é um exemplo de crítica ao marxismo mecânico localizado por Lukács no princípio revolucionário da Internacional Socialista. Esta obra rendeu ao autor forte repressão, forçando-o a redigir, em 1828, as Teses de Blum, em que rompeu com os ideais políticos apresentados cinco anos antes.
Lukács se dedicou à literatura desde o início de sua trajetória intelectual, começando a abordá-la através do teatro. A alma e as formas, publicada em 1911, demonstra a preocupação do jovem autor com a forma literária moderna, que, por sua incapacidade de transmitir questões fundamentais da vida contemporânea, de dialogar com o mundo alienado do capital, anunciava uma crise na arte e na sociedade. A primeira abordagem sobre o romance foi feita em A teoria do romance. Redigida entre 1914 e 1916, antes da filiação do autor ao Partido Comunista, o texto já apresenta uma visão materialista da história, em que se fazem presentes os conceitos de forma (que se mostrou uma preocupação desde 1911) e totalidade, sob direcionamento hegeliano. A teoria do romance foi reconhecida por seu autor como “a primeira obra das ciências do espírito em que os resultados da filosofia hegeliana foram aplicados corretamente a problemas estéticos” (Lukács, 2009, p. 11), ou seja, como a primeira teoria do romance a pensar o desenvolvimento histórico da estética romanesca.
Em A teoria do romance, Lukács elaborou uma análise que diferenciou a forma trágica da épica, afirmando que o individualismo da modernidade, que isola os indivíduos da vida em comunidade, distancia o trágico, aos moldes da Ilíada e da Odisseia de Homero, da existência. O épico, mais próximo da realidade empírica do sujeito, possibilitou o desenvolvimento do romance na modernidade como epopeia burguesa, sintomática da crise moderna em torno do individualismo impulsionado pelo capitalismo, que faz da luta de classes o motor da sobrevivência do homem dentro de um mercado que também produz a arte. Por isso, na sociedade moderna, o romance aparece como uma forma de resistência à alienação do capital. Enquanto o herói épico vive em comunidade, o herói romântico é sempre solitário, porque busca um mundo há muito perdido em meio ao colapso do capitalismo, em que não há totalidade espontânea do ser, há a lógica de mercado e do valor da mão de obra, que transforma os seres humanos em máquinas alienadas, fazendo do romance a forma adequada ao estado de espírito contemporâneo de luta contra a falta de sentido.
Após a publicação de A teoria do romance, Lukács se dedicou mais ao debate político travado em História e consciência de classe, nas Teses de Blum e outros escritos. Entre 1936 e 1937 escreveu, em Moscou, O romance histórico, retomando a literatura como objeto de análise, desta vez se dispondo a uma análise da forma literária em chave marxista, a partir da interação entre a história e a totalidade, conforme exposto no “Prefácio”:
[A] investigação teórica assenta-se aqui em uma base histórica. […] E este trabalho pretende mostrar como a gênese e o desenvolvimento, a ascensão e o declínio do romance histórico são consequências necessárias das grandes convulsões sociais dos tempos modernos, e provar que seus diferentes problemas formais são reflexos dessas convulsões histórico-sociais (Lukács, 2011, p. 31).
Partindo da concepção de história de Karl Marx (1818-1883), que compreende o tempo como uma articulação entre passado, presente e futuro, em O romance histórico, Lukács buscou articular romance e história, aprofundando assim sua relação com a dialética hegeliana (presente em A teoria do romance) no sentido que o conhecimento consciente do passado histórico permite a humanização do indivíduo e o pensamento crítico sobre a existência, fundamentais em meio à alienação do mundo moderno. No texto de 1936, Lukács extrapolou a noção conceitual de romance como epopeia burguesa, pois tomou a forma literária como categoria de análise segundo a qual a composição narrativa do texto é capaz de compreender as contradições do tempo histórico representado, tendo o realismo como método que permite que a totalidade da história seja alcançada. Todavia, a análise centrada na forma literária não faz de O romance histórico uma história do romance ou uma história literária. Segundo Arlenice Silva, estudiosa da teoria lukacsiana,
É […] um ensaio de natureza teórica que circunscreve um tipo muito particular de reflexão sobre a “grande literatura que retrata [darstellt] a totalidade da história” ou, ainda, uma teoria descritiva que busca o momento de confluência entre o sentido e a experiência no qual foi possível à filosofia apreender a “interação entre o espírito histórico e a grande literatura que retrata a totalidade da história” (Silva, 2011, p. 10, grifo da autora).
De acordo com Lukács (2011, p. 28-29), a obra é um ensaio sobre o romance realista como forma estética, considerado humildemente “uma primeira abordagem” sobre o tema devido a limitações apontadas pelo autor: 1) a abordagem teórica, que não apresenta desenvolvimento histórico; e 2) fragmentária da relação entre desenvolvimento econômico, visão de mundo e forma artística. Entretanto, a abordagem de Lukács persiste, quase um século depois de sua primeira publicação, como referência sobre o romance histórico devido ao caráter fundamental de sua análise: a ideia de que a arte é um produto humano e, por isso, interfere na compreensão da história. Em outras palavras, a arte é histórica e, portanto, a literatura também o é; além de histórica, é racional, posto que fruto da consciência do indivíduo de sua historicidade.
Ora, como uma obra fragmentária pode abranger a totalidade? Lukács considerou sua obra fragmentária no que tange a questões metodológicas, à limitação de análise sobre um recorte de fontes referentes a um período amplo da história e da produção literária ocidental. De acordo com Arlenice Silva (2016), em Lukács, a totalidade é uma forma de se pensar a arte como um complexo material, imanente e formal, segundo a qual a obra literária é fechada em si mesma e deve ser analisada pela esfera da criação (perspectiva do escritor) e da recepção (perspectiva do leitor). É uma homogeneidade diante da heterogeneidade do mundo. Em outras palavras, a obra literária, por ser histórica e racional (produzida por um sujeito consciente de sua historicidade), tem o potencial de expor o complexo e muitas vezes controverso desenvolvimento histórico do mundo através da narrativa ficcional.
De modo geral, a fundamentalidade de O romance histórico reside no entendimento de Lukács de que a função primordial da literatura é a captação do sentido histórico de sua época, da historicidade do sujeito que vive em determinado tempo e espaço com seu passado e sua perspectiva de futuro, através da narrativa realista, na qual um acontecimento é capaz de ditar novos rumos a uma totalidade. Uma forma literária da potencialidade do Romance Histórico Realista passou a existir, segundo Lukács, em um momento histórico específico, após uma história pregressa de condições sócio-ideológicas possibilitar sua emergência no início do século XIX.
Para saber mais:
FREDERICO, Celso. A arte no mundo dos homens: o itinerário de Lukács. 1. ed. São Paulo: Expressão Popular, 2013.
LUKÁCS, Georg. A teoria do romance: um ensaio histórico-filosófico sobre as formas da grande épica. 2. ed. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2009.
LUKÁCS, György. O romance histórico. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2011.
SILVA, Arlenice Almeida da. A história e as formas. In: LUKÁCS, György. O romance histórico. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2011, p. 9-26.
SILVA, Arlenice Almeida da. O romance histórico: Curso livre Lukács. YouTube: TV Boitempo, 09 mar. 2016. 2h 46min 44s. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=HXfu2YQoNM0. Acesso em: 25 ago. 2025.
Ilustração: György Lukács, LavraPalavra. Imagem modificada por ChatGPT.









