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por Cristian de Paula Sales Moreira Junior, especial para o LiceuOnline.

“Não ignores que o primeiro bem a se fazer é o de não causar mal a ninguém” (ROUSSEAU, 1853, p. 17 – tradução livre de Wilson Paiva)

 

Este pequeno ensaio se apresenta como notas de uma iniciativa de leitura aprofundada e reflexiva, mas podendo ser considerada inicial, de Rousseau, filósofo conhecido cujo a obra tive contato vez ou outra quando em assuntos específicos: investigar sobre a ideia de um contrato social e as críticas à propriedade privada, por exemplo[1]. Aquele que o nome nos faz lembrar da ideia convencional de que o homem nasce bom, mas a sociedade o corrompe, se apresenta, neste momento, como um autor muito mais abrangente, com um sistema filosófico que trata de questões antes não imaginadas por mim. Sistema filosófico este que interage totalmente com as minhas últimas preocupações, a saber, o conhecimento e a dialética. Revisitar alguns textos, e conhecer novos outros, me passa a impressão de que deveria tê-lo estudado mais aprofundadamente antes, para que pudesse compreender de forma mais abrangente e complexa problemas que surgiram nas minhas investigações durante as leituras de Marx e Hegel, principalmente. Dito isso, passemos para algumas considerações das últimas leituras de Rousseau que venho desenvolvendo sob orientação do professor Dr. Wilson Paiva.

Interessante que Rousseau parece sempre apelar para o homem natural. Pede para observarmos a Natureza e seguir o caminho que ela nos indica. Parece interessado em fincar os pés no chão, abandonando um certo voo vazio, uma vivência artificial. É como se, de certa forma, a sociedade da época tivesse se tornado tão fetichizada, tão vivente numa espécie de mundo virtual, na aparência, que a verdadeira realidade, ou necessidade, das coisas tivesse se esvaído. Como se começássemos a usar óculos escuros à noite, se o objeto passasse a ser considerado símbolo da evolução e desenvolvimento humano nas ciências e nas artes… A perfectibilidade, no entanto, não conduz necessariamente, ou obrigatoriamente, ao erro ou à degradação. Poderia levar a destinos melhores. A questão que se coloca é que o ser humano possui livre arbítrio, e seu destino depende das suas escolhas. Então o aperfeiçoamento gera deterioração por causa das escolhas do homem no tempo. Mas é justamente por isso que a mesma razão que o desfigura, pode ser a razão que o aperfeiçoará de fato, conduzindo-o de homem civil a homem cidadão.

A mim me parece muito importante, também, o contexto em que Rousseau escreve.Era o contexto de decadência da nobreza e início de um novo período, a partir do Renascimento, que valorizava os Estados Nacionais, a liberdade e iniciativa individuais e a burguesia como portadora destes valores. Ele está claramente se posicionando contra a nobreza, mas possivelmente também contra uma certa burguesia que emerge e se degrada tanto quanto. Sua teoria política, então, se fundamenta principalmente em uma crítica à nobreza e o fundamento de um novo tipo de sociedade, baseado no trabalho, na propriedade e na igualdade.

O filósofo, então, nos conduz ao ponto de inflexão onde a humanidade, que em potência de caminhos diferentes, acabou se desenvolvendo por contingência para uma sociedade degradada, corrompida. Para uma correção do percurso, se faz necessário um processo educacional, e Rousseau contribui para a construção deste processo com uma Educação à partir da observação da Natureza. Importante é esta linguagem, visto que, por

Rousseau gostar muito de plantas, de as observar e estudar como um verdadeiro botânico, recorre inúmeras vezes a esta comparação. Não é fortuitamente que começamos este ensaio com a arte de Nicolas Andre Monsiau: um Rousseau sempre atento, observador, e preocupado com a forma como as plantas se desenvolvem em seus processos de interação com o meio e com seu próprio organismo.

Este conflito, conceituado na oposição entre Ser e Parecer Ser, era muito aparente nas artes e nas ciências. Talvez, por isso, um certo pessimismo em relação ao presente; mas deste pessimismo nasce um dialético otimismo quanto ao futuro pela Educação. Aqui, me parece muito com o problema inicial de Hegel nos escritos de Berna (1793-1796), em que surge o que Lukács chamou de “positividade”, um período teológico de Hegel em que ele formula suas primeiras concepções de História e do presente. Este problema, grosso modo, seria o seguinte: como a religião da liberdade, a religião dos primeiros seguidores de Cristo, se torna na História o seu próprio contrário, ou aquilo que a aniquila em si mesma, isto é, a religião do arbítrio e da opressão?

Em Rousseau, a dialética (se é que podemos chamar assim), aparece no seguinte aspecto: o progresso gerou depravação. Como pode uma faculdade deteriorar o homem no momento que o aperfeiçoa? E então, aqui também a aparente contradição é acompanhada de uma posição teleológica de unidade. A questão é que, possuindo o homem a faculdade de se aperfeiçoar e de desenvolver sua imaginação para a criação de elementos complexos de uma sociedade, a própria sociedade criada, de certa forma, aniquila esta mesma faculdade. Para esta “contradição” há uma síntese: o homem cidadão, aquele que reverte o caminho do amor de si ao amor próprio, aquele capaz de estabelecer o contrato social, aquele patriota. Mas, ao mesmo tempo, também aquele que resgata os princípios e valores do homem natural. Este homem surge como resultado do processo educacional proposto por Rousseau. Isto é, a questão é pedagógica, e só por meio do relacionamento humano orientado por este processo educacional, o indivíduo poderá desenvolver a consciência da degradação e, assim, a melhor forma de revertê-la. Reverter, entretanto, não significa retornar. Isto porque não é propósito do filósofo que o homem volte à um estado primitivo em que vivia isolado, mas o Emílio é educado para viver em sociedade, com seus equivalentes. Neste sentido, o homem cidadão não é duplo, como se comportasse duas naturezas – a natural propriamente, e a social -; mas composto, no sentido de que as duas não se separam e passam a ser, na verdade, uma mesma realidade, isto é, as duas naturezas atuando juntas. Rousseau, então, trabalha nesta tríade entre o homem do passado, o homem do presente e o homem do futuro. O homem do futuro o é em potência.

Este homem natural, de que trata Rousseau, nos primeiros encontros de agregação, ainda que não permanente (é esta agregação permanente que gera a sociedade), como na busca de um parceiro sexual para o acasalamento, por exemplo, articula símbolos para compreender e se fazer compreendido pelos seus equivalentes. Essa articulação, princípio da sociedade civil, parece apresentar as ideias como um valor absoluto inerente ao homem. Isto é, o homem sempre teve ideias, e é isto que abre os caminhos para a possibilidade do desenvolvimento de uma sociedade, capacidade que os outros animais não possuem. De onde vêm essas ideias? Existe aí o teor de Providência divina. Assim como não podemos separar uma certa compreensão botânica do mundo da produção de Rousseau, por ter sido ele um botânico, também não podemos separar de seu pensamento, e portanto da sua visão de mundo, o fato de que ele era cristão. Este é um dos muitos paradoxos que aparecem nas leituras de Rousseau entre os especialistas. No entanto, creio que o mais correto é tentar entender o filósofo na integralidade e unidade de seu pensamento. Compreender seu sistema filosófico não em blocos, mas em sua totalidade.

Assim, como há uma concepção de religião em Rousseau entendida sob dois aspectos, não podemos excluir o primeiro. Este figura como uma cosmovisão religiosa mesmo: existência de um D-S que atua no mundo; transcendência da vida; recompensa pelas boas obras; punição para as más obras; sacralidade das leis de D-S. A outra, uma religião cívica, onde se trabalha com as ideias de pátria e seus consequentes signos, principalmente o patriotismo enquanto sentimento coletivo. No entanto, o mundo humano pertence aos homens. Os problemas humanos, então, se resolvem por vias humanas, e esta via, como já dito, é a Educação. Isto aponta para o fato de não haver transcendência na ordem política. Neste aspecto, Rousseau não seria liberal ou socialista, talvez uma terceira via. Algo que se aproxima de um Estado que intervém no sentido de diminuir as desigualdades, dentre outras coisas, o que me remete, pessoalmente, direto à ideia de uma Social Democracia.

Bem como a estátua de Glauco havia sido desconfigurada, a ponto de parecer mais com uma besta do que com um ser divino, assim também se encontrava, e se encontra a condição da sociedade humana. As paixões nos transformaram a ponto de nos desconfigurar quase totalmente. Apesar de não haver a possibilidade de erradicação das paixões, tendo em vista que são uma espécie de constante antropológica, a situação, entretanto, não está completamente perdida, mas é remediável. O remédio é, dialeticamente, a própria arte e a ciência, ou a própria faculdade humana que as desenvolveu. Isto porque o problema não está na arte ou na ciência em si, mas na forma como as escolhas humanas pelo livre arbítrio conduziram a um caminho de erro e degradação. Então contra uma arte e ciência ruins, uma arte e ciência boas! Eis aqui o meu ponto de partida para continuar a investigar as obras do filósofo genebrino.

 

 

 

Imagem de capa: Jean-Jacques Rousseau recolhendo ervas em Ermenonville (1712-78), de Nicolas Andre Monsiau (Bibliothèque Nationale, Paris, France)

 

 

 

Referências:

PAIVA, Wilson Alves de. O Emílio de Rousseau e a formação do cidadão do mundo moderno. Trindade-Go: CEODO, 2007.

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Emílio ou da educação. Trad. Roberto Leal. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

ROUSSEAU, Jean-Jacques. 1999a. Do contrato social e Ensaio sobre a origem das línguas. Coleção Os pensadores, Vol. I. São Paulo: Nova Cultural.

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens e Discurso sobre as ciências e as artes. Coleção Os pensadores, Vol. II. São Paulo: Nova Cultural, 1999b.

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a economia política / Jean-Jacques Rousseau ; trad. e introd. Luís Augusto Costa Dias. – Lisboa : Biblioteca Nacional de Portugal, 2014.

[1] Estes temas e outros, devido aos limites estabelecidos para este ensaio, serão ignorados. Assim, irei me dedicar àqueles aspectos que, por me parecerem novidade, me chamaram mais atenção.

Sobre o(a) Autor(a)

Cristian de Paula Sales Moreira Junior

Historiador e professor.
Publicado no Liceu Online por:

Edição - Liceu Online

Revista online de Humanidades. @liceuonline

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