Márcio Seligmann-Silva, professor da UNICAMP, é um pesquisador reconhecido pelo trabalho, como tradutor e comentador, acerca da obra de Walter Benjamin e, especialmente, pelo estudo do testemunho. É também um dos curadores da exposição MemoriAntonia: por Uma Memória Ativa dos Direitos Humanos abrigada pelo Centro Universitário Maria Antonia da USP, palco de um episódio de violência durante a Ditadura Militar no Brasil. Em entrevista recentemente concedida a Gabriel Pochapski, Seligmann-Silva (2022), quando questionado acerca do trabalho de curadoria da exposição, ressalta a importância de publicizarmos “o terror que foi a ditadura”, afinal, ela é sustentada como um troféu por aqueles que celebram torturadores como se fossem heróis. Para Seligmann-Silva, o Brasil não é um “país sem memória”, mas, antes, um país de memórias recalcadas e tendencialmente apagadas (PRADO, 2021). O que fazer, então, a respeito dessa memória silenciada? A exposição instalada no Centro Maria Antônia reuniu artistas de diferentes gerações e é uma das respostas possíveis.

Ainda que consideremos que o Brasil não é, de fato, um país sem memória, precisamos lidar com o esquecimento que acompanha nossos maiores traumas, sobretudo a Ditadura Militar. Atentemo-nos ao peso da palavra “tendencialmente” na fala de Seligmann-Silva: quando se fala em esquecimento é possível imaginar um esquecimento nietzschiano, natural e até desejável, afinal, o passado tem de passar, mas o esquecimento que acompanha nosso período ditatorial caminha ao lado do silenciamento, do apagamento deliberado. Ademais, é um passado mais do que presente, constantemente retomado em discursos políticos e alvo dos mais diversos malabarismos retóricos. O apagamento vai desde a destruição de provas, documentos, espaços físicos e corpos até a negação, não do evento, mas dos crimes cometidos. O negacionismo do Holocausto, por exemplo, ataca a própria existência do acontecimento e das câmaras de gás nas quais judeus foram assassinados em massa. Aqui é negado o teor negativo e seus piores aspectos, como a tortura que, em outros casos, sequer é negada, mas enaltecida, positivada. O golpe vira revolução de restauração da ordem pública.
Conhecer a história da Ditadura no Brasil é essencial para desmontar, entre outros, o discurso de que foi um período próspero e perceber o endividamento do setor público e aumento da desigualdade social que acompanharam o “milagre econômico”; bem como a falácia de que não houve corrupção durante a Ditadura, quando os mecanismos de fiscalização foram amordaçados. Como dito, a disputa narrativa se concentra – não somente, mas singularmente – no que se refere ao desrespeito massivo pelos direitos humanos nas perseguições, prisões, torturas e desaparecimentos. Práticas essas que foram testemunhadas, documentadas e comprovadas, a exemplo do relatório da Comissão Nacional da Verdade. Considerando que grande parte da normativa internacional de direitos humanos – como a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) e a Carta de Nuremberg (1946) – já estava estabelecida à época em que os crimes foram cometidos, a Comissão Nacional da Verdade priorizou quatro modalidades de violação dos direitos humanos em suas pesquisas: 1) a prisão ilegal ou arbitrária; 2) a tortura (incluindo a prática da violência sexual); 3) a execução sumária, arbitrária ou extrajudicial imputada ao Estado; e 4) o desaparecimento, a ocultação de cadáveres (BRASIL, p. 280).
Mesmo que a história possa funcionar como uma resistência às políticas de esquecimento e/ou apagamento e por mais imprescindível que seja a exposição dos elementos factuais, há, em todo evento traumático, uma dimensão aparentemente inapreensível cuja representação se mostra um desafio aos historiadores. É nesse momento que a tentativa de elaboração artística encontra lugar (como tratado em texto anterior desta série), o que inclui as artes visuais e também a literatura. Como perceber as marcas do desaparecimento forçado para as famílias de tantas vítimas jamais encontradas? Foi em uma conferência do professor Seligmann-Silva que me atentei para a obra de Bernardo Kucinski. Com a liberdade de quem escreve uma obra ficcional, Kucinski escreveu o que talvez seja o romance mais importante sobre a Ditadura Militar do Brasil. O livro K. Relato de uma busca (2011) tem como protagonista um velho judeu polonês, ele mesmo preso na juventude por suas atividades políticas, quem migrou para o Brasil e cuja filha desapareceu durante a Ditadura. Desde o início já sabemos que essa filha não será encontrada, o que não diminui a angústia da narrativa que é a de uma batalha incessante de um pai em busca da filha, mesmo quando a esperança de encontrá-la viva é pouca. O teor testemunhal da obra – que se inicia com o aviso de que “tudo neste livro é invenção, mas quase tudo aconteceu” (KUCINSKI, 2016, p. 12) – é evidenciado pela história da irmã do autor, professora de química na USP presa pelos militares em 1974 e jamais encontrada. Assim, Kucinski mistura a história de sua irmã, do sofrimento de seu pai e sua experiência jornalística para preencher, com ficção, algumas lacunas e trabalhar com o fato de que jamais se saberá exatamente o que aconteceu com essa e tantos outros desaparecidos sequestrados, torturados e assassinados pela Ditadura Militar.
Fica, portanto, a indicação de três formas diferentes de se tratar a Ditadura Militar: a exposição na USP (para quem estiver em São Paulo); o relatório da Comissão Nacional da Verdade (acessível pelo site); e o livro de Bernardo Kucinski.
Referências Bibliográficas
BRASIL. Relatório da Comissão Nacional da Verdade. Comissão Nacional da Verdade (CNV), 10 dez. 2014. Disponível em: http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/. Acesso em 06 abril 2022.
KUCINSKI, Bernardo. K. Relato de uma busca. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
PRADO, Luiz. Exposição ativa memória para alertar contra a ditadura. Jornal da USP, São Paulo, 12 nov. 2021. Disponível em: https://jornal.usp.br/cultura/exposicao-ativa-memoria-para-alertar-contra-a-ditadura/. Acesso em: 05 abril 2022.
RELEMBRE o que foi a Batalha da Maria Antônia entre alunos da USP e do Mackenzie. UOL Educação, 02 out. 2013. Disponível em: https://educacao.uol.com.br/album/mobile/2013/10/02/relembre-o-que-foi-a-batalha-da-maria-antonia-entre-alunos-da-usp-e-do-mackenzie.htm#fotoNav=1. Acesso em 05 abril 2022.
SELIGMANN-SILVA, Márcio. “Precisamos mostrar o terror que foi a ditadura”: entrevista com Márcio Seligmann-Silva. Entrevista concedida a Gabriel Pochapski. História da Ditadura, 9 mar. 2022. Disponível em: https://www.historiadaditadura.com.br/post/precisamosmostraroterrorquefoiaditaduraentrevistacommarcioseligmann-silva. Acesso em: 05 abril 2022.
This Post Has 0 Comments