As manifestações do trauma nas obras de arte e suas possibilidades de representação são, ainda hoje, um desafio para historiadoras e historiadores da arte. Movida pelos questionamentos e problemáticas levantadas por essas questões, esse tema se tornou meu objeto de pesquisa no mestrado e, recentemente, no trabalho que venho desenvolvendo no doutorado do Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte da USP. Esse ensaio escrito exclusivamente para o LiceuOnline, visa propor uma reflexão sobre a Arte e a Ditadura Militar, a partir da comparação de duas obras da arte contemporânea brasileiras: Através (1983-1989), do artista Cildo Meireles e Ruína Brasilis (2021) de Adriana Varejão.
Pensar a representação do trauma e suas possibilidades é mergulhar sob “a faculdade de intercambiar experiências”, como teoriza Walter Benjamin em seu ensaio O Narrador. Mas o que seria de fato “intercambiar experiências”, e como fazê-lo? A crise da narrativa moderna é permeada por esses questionamentos e a linguagem acaba sendo sempre o cerne da questão. Mas afinal, a linguagem é absoluta nela mesma ou um recurso expressivo de construção de sentido?
Se de um lado, esse debate colocaria historiadores, e o pessoal da Letras , de cabelo em pé, por outro, a arte encontra liberdade para arrebatar o que os sentimentos ainda não estão preparados para teorizar. A linguagem artística visual, além de expressiva, articula razão e emoção de maneira intempestiva, descontruindo conceitos, elaborando sua própria narrativa e desarticulando os limites verbais das construções sintáticas.
Em 1949, Theodoro Adorno levanta uma polêmica afirmação sobre a crise da linguagem pós Segunda Guerra Mundial: “escrever um poema após Auschwitz é um ato bárbaro, e isso corrói até mesmo o conhecimento de por que hoje se tornou impossível escrever poemas” (1998, p. 26). Essa asserção nos interessa para refletir sobre a ruptura linguística proporcionada pelos eventos catastróficos dos campos de concentração nazistas e o genocídio da comunidade judaica, bem como a uma questão filosófica complexa acerca do debate ético e estético que emana de nossos pensamentos e nossas ações. No centro desse debate encontra-se o conceito-chave de mimese, pois a crise da linguagem nos encaminha, consequentemente, à crise da representação e da técnica.
Aproveitando Adorno, me permito parafraseá-lo: é possível fazer arte no Brasil após a Ditadura Militar de 1964? Inúmeros são os artistas que se interpelaram e se colocaram em risco para promover uma arte engajada, crítica e reflexiva entre os anos de chumbo. Na música de Chico Buarque, do Teatro Oficina ao Cinema Marginal Glauber Rocha, nas instalações provocativas de Artur Barrio e Cildo Meireles, a arte achou meios para burlar a censura e se posicionar diante dos ataques, da violência e dos cerceamentos de liberdades promovidos pelo Estado. Diante de tanta morte, tortura, injustiças sociais e notícias falaciosas em apoio ao governo, a arte se reformula, cria estratégias e novas linguagens para barrar e constranger o horror e o autoritarismo.
Li em algum lugar certa vez, que não foi a arte que enfrentou a Ditadura, mas a Ditadura que enfrentou a arte, visto a riqueza de produções durante o período de 1964 a 1985. Mas o que dizer pós Ditadura?
A questão da memória, do esquecimento e a escrita sobre os eventos da Ditadura vem sendo revisados, avaliados e conceituados pela historiografia. O historiador Julio Bentivoglio defendeu em seu artigo Políticas e práticas de esquecimento em um país sem memória: enredamentos da ditadura militar no Brasil, que a falta de uma elaboração sobre o passado brasileiro durante o período da ditadura, não foi um caso de amnésia individual:
De algum modo, boa parte do esquecimento – e trato aqui do esquecimento histórico do passado político brasileiro (…) – é, muitas vezes, produzida por políticas e práticas deliberadas, por meio das quais determinados grupos e indivíduos com interesses específicos ocultam certos atores, ações e eventos. Trata-se de um tipo particular de esquecimento, mediante o apagamento de rastros. (BENTIVOGLIO, pág. 161)
Esse apagamento de rastros se deu mediante ao impedimento de acesso aos documentos e registros de violação aos direitos humanos, violência deferida aos trabalhadores, camponeses, indígenas e nas Universidades, a relação das pessoas mortas e desaparecidos políticos durante o período, no qual esses registros contém a identificação e autoria dos crimes.
Narrar esse evento traumático, essa ferida na memória brasileira, significa lidar com políticas de esquecimento e manipulação dos meios de comunicação de massa. Prática utilizada pelo Estado ainda no Brasil bolsonarista de 2022. Por isso escolhi duas obras de arte que se posicionaram diante dessas práticas e propuseram, de certa forma, repensar e apresentar o abalo emocional, traumático e linguístico desses eventos.
A instalação Através (1983-1989), do artista brasileiro Cildo Meilles, que se encontra atualmente no museu de arte contemporânea Inhotim, permite ao espectador mergulhar sobre a nebulosa amalgama de dor causada pelos militares.
A instalação do artista ocupa uma sala inteira. Caminhando sobre os estilhaços de vidros espalhados no chão é pisar, literalmente, sobre as rachaduras de um Brasil dilacerado, fissurado, dividido e fragmentado. São os escombros da memória que estão colocados ali.
O tato dos pés sobre os cacos de vidro, causam agonia. Protegidos pelos sapatos, o objeto é impedido de exercer sua função cortante, diferente daqueles torturados nos porões do DOI-CODI, que não tiveram o mesmo privilégio diante dos instrumentos de tortura. Metáfora e literalidade se confundem o tempo todo, causando estranhamento, repulsa, curiosidade e reflexão.
Ver os objetos colocados de forma caótica no espaço, emana um sentimento que vai para além do olhar. O caos da obra entrelaça e flui com a confusão de sentimentos que provoca. A catástrofe deferida desse caos é o próprio país dilacerado por esse caos político, econômico, cultural, ideológico, e, sobretudo, físico, emocional e psicológico.
Grades, pedaços de madeira, arame farpado, traz a memória objetos utilizados em campos de concentração, aqueles aos quais, na Alemanha nazista, serviram de espaço para uma das maiores tragédias da humanidade. Os limites colocados nesses espaços de cerceamento de liberdades, são colocados por Cildo com lacunas entre eles, lembrando um labirinto. Atravessá-lo, seguir pelo caminho que direciona, nos leva a uma bola grosseira de espuma, grotesca e enigmática. Como as grades, cercas e arames farpados são vazados e podemos ver através deles, o artista questiona: convém atravessar esse labirinto de escombros? Vaguear por um labirinto é se ver num infinito de agonia, parafraseando Jorge Luis Borges.
A bola localizada no centro é o elemento mais abstrato da instalação e carrega consigo uma pluralidade de sentidos. A única fonte de luz do ambiente, se encontra acima dela, produzindo sombras e silhuetas ao redor. A forma sem-forma das sombras, nos coloca no plano da mente, afetada pelo jogo político de desinformação e desconhecimento do passado.
Estratégia deliberada, essa intervenção dos meios de comunicação de massa sobre o passado político brasileiro erige verdadeiros labirintos semióticos nos quais pessoas comuns são enredadas e não conseguem sair, tornando-se incapazes de desenvolver uma reflexão profunda sobre a política ou sobre o passado histórico. (BENTIVOGLIO, pág. 168)
Mediante o contexto histórico em que foi produzida, a obra também propõe o futuro incerto que ainda está por se concretizar. Os anos 1980 no Brasil, veio carregado de esperanças e hesitações em relação ao curso político de abertura democrática. A bola de espuma é esse “algo” que ainda está por ser modelado e, uma vez diante dos destroços que a cercam, as memórias violentas dos crimes da ditadura, qual forma estamos dispostos a dar a ela?
Localizar a Ditadura Militar como um evento-limite e traumático, é um compromisso cívico, com implicações éticas, morais e humanitárias, é um compromisso cívico, uma responsabilidade social perante a injustiça e o horror acometido contra das vítimas que se foram e as que sobreviveram.
Disputar a verdade mediante narrativas desonestas é atingir um nível de perversidade inalcançável pela coerência e pela tolerância. Só resta revolta, silêncio e a impossibilidade de construir uma “política coletiva ou atuante no presente e no futuro” (BENTIVOGLIO, pág. 171).
A naturalização da violência, consequência da falta de impunidade dos que promoveram atos de barbárie, onde a legitimidade dos relatos das vítimas de tortura é colocada em questionamento, gera uma deturpação da opinião pública e coloca o Estado, como a única instituição capaz de salvaguardar a segurança nacional. Isso, entre muitas outras questões complexas que não caberiam em uma síntese, leva-nos ao Brasil de Bolsonaro. O atual presidente, no discurso do dia 31 de março de 2022, afirmou que o Brasil seria uma “republiqueta” se não fosse a Ditadura Militar. O Ministro da Defesa Braga Netto, divulgou em documento oficial, que a ditadura “fortaleceu a democracia” e foi “um marco histórico da evolução da política brasileira”. Trata-se de uma política deliberada de esquecimento e uma negação da História brasileira.
Assim como Cildo Meirelles em 1983, a artista brasileira Adriana Varejão, em sua obra Ruína Brasilis de 2021, reflete sobre as ruínas da política atual. A coluna feita de azulejo português em amarelo, verde e branco, apresenta uma ruptura em uma de suas extremidades, uma ferida de carne seca feita em madeira.
As cores escolhidas pela artista remetem a bandeira nacional, apropriada por extremistas e conservadores que evocam um patriotismo excludente. O charque é o Brasil de Bolsonaro. Adriana pinta a carne em suas obras há mais de 20 anos, ora para retratar a ferida ainda exposta da colonização europeia, ora para dilacerar de forma visceral as estruturas rígidas que permeiam as bases da cultura brasileira.
A abstração da obra nos convida a refletir sobre o que está por dentro dessa estrutura sólida, do que é feito os pilares das instituições. Ao ver a história a contra pelo, investigando o que está na sustentação das estruturas sociais, a arte de Cildo e Adriana se recusam a uma construção narrativa linear, uma vez que é cheia de lacunas e furos.
Quanto de trauma esses azulejos e esses arames farpados não carregam e encobrem? Testemunhas da dor, esses objetos inanimados caso falassem, não encontrariam as palavras. Mas ainda assim, se visto através deles, mostram a carne putrefata e a bola estéril que o Brasil falhou em modelar.
FONTES:
ADORNO, Theodor. Crítica cultural e sociedade. In. ____. Prismas. Tradução de Augustin Wernete Jorge
Mattos Brito de Almeida. São Paulo: Ática, 1998.
BENTIVOGLIO, Julio. Políticas e Práticas de Esquecimento em um país sem memória: enredamentos da ditadura militar no Brasil. In: História e Trauma. FEDRIGO, Fabiana de S. GOMES, Ivan L (org.). Editora Milfontes, Vitória, 2020. Pág. 161 a 182.
GAGNEBIN, Jeanne. Lembrar esquecer escrever. São Paulo: Editora 34, 2006.
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