Um ponto em comum em todos os relacionamentos que tive, que evolviam morar junto e dividir o espaço com outra pessoa, foi a limpeza da casa. E o que venho observado desde sempre sobre essa questão, é o fato dela ser reincidente em muitos casos, por muitas pessoas que se aventuraram a compartilhar sua vida com outra, seja no sentido amoroso, ou amigos em república ou mesmo dois amigos ou amigas que se propõe a morar juntos por necessidade em dividir as despesas da casa. As reclamações são sempre as mesmas: uma pessoa é colocada com a patrona da limpeza, enquanto a outra… bem, a outra não liga muito pra isso.
Recentemente estava eu e meu companheiro com um casal de amigos no bar e o assunto chegou nesse quesito arrumação da casa e o clichê se reestabeleceu: um é colocado como o maluco da limpeza e o outro, bem, o outro não liga muito pra isso. Geralmente essas questões são levadas para relações de gênero, o que não deixa de ser, obviamente. Uma vez que, culturalmente, a organização da casa é sempre atribuída à mulher, logo algo servil e subserviente, e ao homem, cabe-lhe prover a casa financeiramente. Uma troca aparentemente justa, se ainda estivéssemos inseridos em uma lógica ocidental de estrutura familiar falida e conservadora. Desde a inserção sistematizada da mulher no mercado de trabalho, essa estrutura, que já nasceu falida, não faz absolutamente nenhum sentido. E o que temos é a herança perversa da sobrecarga da mulher que é submetida a uma tripla jornada de trabalho, sendo ainda mais pesada quando incluído a presença dos filhos.
Toda essa estrutura é clichê e sem graça. Tediosa para falar a verdade. Esse sistema já está escancarado e aquele que continua a compactuar com ele é acomodado ou oportunista, o que dentro dessa discussão não apresenta exatamente uma distinção clara. A própria forma de estruturar esses núcleos de obrigações entre homens e mulheres já me parece conveniente ao universo masculino, o que resulta nesse debate cíclico e infinito, e lógico, nada muda.
O que eu observei, na verdade, não abrange necessariamente a uma questão de gênero. Até porque casais que se propõe a morar e construir uma vida juntos não são exclusivamente homens e mulheres. Olhar apenas sobre esse viés é excludente, limitante e, porque não dizer, homofóbico.
Quando eu era adolescente, meu quarto era um nojo. Eu tinha brigas homéricas com meu pai que tentava de todas as formas me convencer que aquele também era parte da casa, logo meu argumento de que aquele era meu espaço e eu o deixava como queria, não o convencia de nenhuma maneira. Clamar por aquela individualidade eram sinais de egoísmo, desleixo e porqueira. Parâmetros comuns em adolescentes em geral. As brigas eram sem fim e nunca terminaram. Pelo menos não até eu ir morar sozinha com uma amiga e perceber o obvio: a casa não se arruma sozinha. E só então, quando o ambiente chegou a níveis de insalubridade mórbida, que eu percebi o quanto deveria ser cansativo para os meus pais manter uma adolescente chata e egoísta indo de contra algo tão simples: deixar o ambiente limpo, confortável, agradável e cômodo, ingrediente básico para uma boa convivência. E foi assim, que aos 19 anos eu travei uma guerra com essa amiga que eu morava junto, pois ela não parecia entender que aquele ambiente de podridão prejudicava substancialmente nossa rotina. A minha mais que a dela, é verdade, uma vez que eu trabalhava e ela não. Ela recebia mesada da mãe.
Na primeira vez que eu fui morar com um namorado, a questão da limpeza era um problema, mas da segunda vez foi o pivô da separação. Depois disso morei com mais duas pessoas. E o problema da limpeza da casa continuava. Não era possível, seria eu o problema então? Mas há algo em comum em todos esses casos também: eu sempre era a que mais trabalhava e aquela lógica estrutural da troca justa de quem fica mais em casa mantém a organização, não parecia se aplicar a mim. No terceiro namorado que eu fui morar junto, eu desisti de brigar por causa disso. Se eu gosto mais da casa limpa, que limpe eu. E por incrível que pareça as brigas pararam. E, ao que parecia, isso não influenciou no término. Que se deu por outros motivos. Mas até que ponto a sobrecarga da manutenção do ambiente em que se vive, não influencia na forma como duas pessoas convivem?
Quando se mora sozinho, essas questões não se aplicam. Cada um vive como quer. Mas viver em comunidade é diferente. A casa é um organismo vivo. Ela é sintoma. Ela te engole. Ela exige manutenção. E é diária. Os homens tiveram o privilégio de exercer sua obsessividade em objetos específicos pois seu dever cívico de limpezas e obrigações domésticas, como comida, lavar roupa e utensílios de uso comum, como sabonete, produtos de limpeza, pasta de dente, desodorante… foi sempre terceirizado por alguma pessoa que entende que sem esses instrumentos a vida fica insalubre. Aprendemos desde criança, na escola, a importância de não jogar lixo no chão. Um dever cívico. Existem países em que isso é passível de multa. Qual a lógica de isso não ser algo implantado também dentro de casa? Não a multa, mas ser considerado ridícula uma pessoa que não se importa com a limpeza, ou pior, acha normal que outra pessoa faça isso por ela?
A crise da masculinidade vem em parte por essas questões. Preocupações antes tomadas como inferiores e femininas, são agora atribuídas ao conjunto. Que golpe duro à alguém que acha que lavar louça é perca de tempo, mas adora usar todos os copos da casa para tomar água.A pessoa que encara o trabalho doméstico como chato ou sem sentido, ainda continua naquele quarto nojento que mantinha na adolescência.Ou o que é comum entre os adolescentes homens:“magicamente” seus quartos ficavam limpos mediante a intermediária mor, a mãe.
Hoje vejo o trabalho doméstico com prazer. Mesmo com a rotina pesada de trabalho, gosto de chegar em casa e organizar o que está fora do lugar. Me relaxa. Mas quando se está em dois (ou três, ou quatro…), é normal que eu fique nervosa se algo que está limpo seja deliberadamente sujo com a espera que aquilo seja organizado novamente por mim, ou pior, que seja dito por quem sujou: “eu não importo que fique sujo, você que é doida”.
Recentemente conversando com uma amiga, me surgiu uma questão que eu ainda não havia elaborado. Essa amiga não se importou em manter o papel “amélia” da relação em todos os namoros e casamentos que teve. Pelo contrário. Ela sentia prazer em fazer tudo pelo companheiro: casa, comida e roupa lavada. Promover o maior conforto possível ao outro. Facilitar-lhe a vida. Pois não se preocupar em fazer comida, ou colocar roupa pra lavar ou limpar a casa, significa ter mais tempo para se dedicar ao trabalho, a um hobby, ou a ler, estudar, cuidar de si. E ela fez isso por todos os homens que passaram pela sua vida. No último relacionamento que teve, ela decidiu que não queria mais isso. E o relacionamento acabou, acusada ainda de não saber sustentar um bom relacionamento, uma vez que esse cara em questão, nunca havia lhe feito mal como os outros. Mas que se beneficiou da facilidade proporcionada como todos eles. E se não é mais isso que ela quer, se era assim que demonstrava amor e como gostaria de ser amada, e agora? O que é o amor então?
Ninguém nasce sabendo cuidar. E ninguém nasce sabendo lavar banheiro ou mesmo colocar roupa na máquina de lavar. Coisas que parecem tão simples, mas já manchei muita roupa branca por misturar com colorida. A questão é o quanto você se implica pra isso. E é desonesto dizer que não se importa com a sujeira. Lógico que se importa, você só tem alguém que limpe suas coisas por você.
Imagem de capa: pintura de Hércules matando um leão – Getty Images
This Post Has 0 Comments