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por Franklin W. L. Pereira, especial para o LiceuOnline.

Decidi, finalmente, depois de algum tempo trabalhando no Poder Legislativo, escrever ensaios, artigos (científicos ou não) que tenham relação com a atividade que realizo diariamente. Não gostaria de fazer isso, entretanto, tentando limitar o discurso à busca (equivocada) de uma pureza na ciência jurídica, como pretendia Kelsen. A cultura, a sociedade, as relações públicas e particulares – tudo guarda sua dimensão teórico-normativa. Entretanto, esse não é o assunto deste primeiro texto, apesar de guardar com ele profunda relação.

Por conta da interdisciplinaridade jurisprudencial, é normal que comecemos a colecionar referências nas mais diversas áreas do saber (científico ou não). No âmbito cultural, sendo assim, alguém que formou profundamente a minha ideia – bem como o meu ideal – foi o dramaturgo paraibano Ariano Suassuna, um dos mais profundos conhecedores e promotores da arte popular nacional, nordestina, sertaneja. Eu nasci e cresci no sertão sergipano e talvez por isso minha admiração por Suassuna possa ter ganhado importância ainda mais superlativa.

Lembro-me de sentir, nas vezes que deixei as terras do Cacique Serigy, profundo pesar, alimentado pela dimensão valorativa que adquiri daquela terra. Muito dessa raiz profunda em que finquei meus pés e de que me orgulho devo ao gênio da Pedra do Reino.

Consequentemente (quem conhece Ariano sabe o porquê), acabei por criar uma espécie de aversão a essa mania exagerada e infundada de se desfazer daquilo que são os pilares ou os alicerces fundadores do Brasil, caluniando-os, em prol de modelos, costumes e sistemas que nada se relacionam com a realidade que aqui foi posta e que merece ser objeto do nosso orgulho.

O Direito, infelizmente, também foi pescado pelo que se pode chamar anglicismo infantil dos apátridas. Juiz anda querendo ser judge. Referências como Miguel Reale e Tobias Barreto parecem esquecidas pela sanha brejeira e cabocla do ideal estrangeirista.

Não entendam mal, não falo nem do inconveniente mau uso da linguagem (digno de todas as críticas), mas de uma conjuntura talvez ainda mais preocupante, quando se fala de ciência jurídica: a transição do sistema romano-germânico para uma espécie de common law tupiniquim.

Não é novidade, principalmente para o Ministro Roberto Barroso, grande entusiasta da transformação referida – tendo, inclusive, escrito artigos a respeito –, que, com o advento do paradigma neoconstitucional da superioridade normativa dos princípios frente aos demais dispositivos da própria Constituição Federal, a Corte Superior ganhou poderes para criar até mesmo tipos penais, decisões sem precedentes no sistema adotado pelo Brasil.

Barroso admite haver uma aproximação entre o sistema europeu comum, principado da legislação normativa, e o sistema inglês, que aufere proeminência e vinculação às decisões judiciais. Segundo o ministro, isso seria uma “evolução” do Direito. Evolução, nesse caso, pode ter seu significado redesenhado: seria um Estado em que o Poder Legislativo perde aos poucos sua competência primária para os arbítrios dos aplicadores da Constituição, que conforme a estação da Lua ou a posição dos astros podem dar diferentes interpretações aos princípios abstratos extraídos por eles próprios do ordenamento magno. Coisas como “direito à felicidade”, que nada significam de per si, podem ser e dar razão a qualquer coisa que se queira (ou que se force a querer). Não sei. Só sei que foi assim.

Não se trata, é importante dizer, para que não pareça birra infantil, da adoção do sistema jurídico anglo-saxão do common law propriamente dito. Não. Trata-se de uma quimera que concede poderes especiais à figura do juiz, que de intérprete da lei passa à função de intérprete dos próprios sonhos. Não há Freud que possa explicar isso.

O anglicismo, aqui, surge como um método de perversão do direito positivo. Não é um fenômeno exclusivo das mentes dos doutrinadores brasileiros, mas que promete grandes avanços neste solo para os próximos tempos. Nossa herança jurídica? Está maculada, assim como nossa cultura e nossa língua. Carecemos de um Suassuna.

 

Imagem de capa: Pieter Brueghel the Younger, 1626 – The Village Lawyer’s office.

Sobre o(a) Autor(a)

Franklin W. L. Pereira

Sergipano de Nossa Senhora da Glória, Franklin é graduando em Direito pelo Centro Universitário do Distrito Federal e assessor jurídico na Câmara dos Deputados.
Publicado no Liceu Online por:

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  1. Merecedoras de aplausos as pertinentes considerações vertidas pelo senhor Franklin W. L. Pereira, notável “graduando em Direito pelo Centro Universitário do Distrito Federal e assessor jurídico na Câmara dos Deputados.” No texto, destaco o seguinte trecho:
    “Não se trata, é importante dizer, para que não pareça birra infantil, da adoção do sistema jurídico anglo-saxão do common law propriamente dito. Não. Trata-se de uma quimera que concede poderes especiais à figura do juiz, que de intérprete da lei passa à função de intérprete dos próprios sonhos. Não há Freud que possa explicar isso.”
    Após degustar a excelente textualidade, lembrei-me do célebre iluminista francês Charles-Louis de Secondat, mais conhecido por Barão de Montesquieu, autor da “teoria da separação dos poderes” (consagrada na Constituição Federal de nosso muito amado Brasil), para quem “Não há tirania mais cruel que aquela que se exerce à sombra das leis e com as cores da justiça.”
    Prosseguindo, não poderia deixar de enaltecer o escritor de “Auto da Compadecida”, a quem o nosso autor dedica admiração superlativa (também eu), que, como advogado que também foi, demonstrou toda a sua sensibilidade existencial quando disse que “Sonho com o dia em que o sol de Deus vai espalhar justiça pelo mundo todo.”
    Concluindo, também sonho com o dia em que “os arbítrios dos aplicadores da Constituição, que conforme a estação da Lua ou a posição dos astros podem dar diferentes interpretações aos princípios abstratos extraídos por eles próprios do ordenamento magno”, sejam substituídos pela obrigação de os Julgadores, no exercício de seu nobre mister, não desprezarem a máxima de Plantão, tendo sempre presente que “O juiz não é nomeado para fazer favores com a justiça, mas para julgar segundo as leis.”

  2. O autor, ainda acadêmico apresenta arguta observação acerca da nossa realidade na prestação jurisdicional. No dia a dia da advocacia sentirá nas decisões das suas lides o pouco apreço que os judges tupiniquins, têm em relação ao seu dever funcional de aplicar com independência, serenidade e exatidão as disposições legais e os atos de ofício.

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