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por Heloisa Xavier C. Vieira, especial para o LiceuOnline.

A sociedade se desenvolve a partir da evolução do conhecimento, sendo ele técnico ou teórico, e por isso é importante preservar os feitos históricos. Sendo assim, a preservação de edificações caminha junto com a necessidade de se conhecer a técnica construtiva e da construção imagética da memória urbana coletiva. Conde de Galveas André de Melo e Castro (1742) disse em uma carta que edifícios de importância histórica são livros que falam da nossa história sem que seja necessário lê-los.

Com o passar dos anos, se viu necessário filtrar e regularizar o que, de fato, era necessário preservar. E então amadurece a noção de patrimônio cultural, e os órgãos competentes para administrar. A arquitetura ganha o nome de “patrimônio edificado” e Vieira Andrade conceitua da seguinte forma:

 O patrimônio arquitetônico – ou patrimônio edificado – corresponde a uma categoria do patrimônio cultural que compreende as edificações isoladas, os conjuntos arquitetônicos e os sítios urbanos aos quais são atribuídos valores culturais. Em seus primórdios, a preservação do patrimônio cultural se concentrou no patrimônio arquitetônico e, em particular nos então chamados monumentos históricos. JUNIOR, Nivaldo Vieira Andrade, 2020.

À partir dessa definição, surge o questionamento: por que preservar?

Coelho primeiramente pontua de forma sucinta e assertiva, que se preserva o interesse histórico, a relação existente entre o edifício, o conjunto arquitetônico com as personalidades, ou fatos de relevância histórica não apenas nacional, mas regional e mesmo local. Em outro momento, diz que outro importante fator que justifica a preservação é o edifício representar socialmente um determinado período de desenvolvimento econômico-social, e que permita o estudo da forma como se organiza a sociedade. E por último, ele cita a preservação da construção que apresenta a possibilidade do conhecimento de técnicas e materiais construtivos dos períodos que passou a arquitetura, e que pode servir de base para posteriores estudos. (COELHO, Gustavo, 2001, p.75.)

E ainda: para quem preservar?

A preservação tem como alvo toda a humanidade, visto que é o nosso conhecimento, cultura e desenvolvimento, sendo de caráter global, nacional, regional ou local (GOELHO, Gustavo, 2001, p.77). Enquanto isso, nos anos 1960 e 1980 aconteceu uma “culturalização” do dito patrimônio, onde ele passa de “patrimônio histórico e artístico” para “patrimônio cultural”. O que antes era analisado no eixo estético e cultural, passa a ser estudado pela vertente da antropologia cultural. Isso significou, também, a ampliação das áreas do conhecimento que estudam o patrimônio e restauração. Além disso, o restauro virou estratégia de projeto e gestão urbana.

Os profissionais da conservação-restauração levaram muito tempo para perceber que o patrimônio cultural é realmente “cultural”, isto é, um meio no qual e através do qual as identidades, o poder e a sociedade são continuamente produzidos e reproduzidos. A preservação do patrimônio tende a ser vista, hoje em dia, como um processo fluído onde são trabalhadas questões sociais e altamente politizadas; e não mais como um conjunto estático de objetos ideais com significados fixos (PEREIRA, Honório, p.103)

Segundo Françoise Choay, nessa mesma época, os núcleos patrimoniais dos países europeus passaram a considerar também como monumentos a arquitetura eclética do século XIX, arquitetura moderna, vernácula, industrial, bairros jardins e vilas operárias, art déco e entre outras vertentes arquitetônicas. Sabendo disso, passamos a discutir mais a fundo o que foi o estilo Art Déco, sobretudo, em Goiânia.

Original da Europa se expande para as Américas a partir dos anos 1920. Seu lançamento ocorreu na Exposition Internationale des Arts Décoratifs et Industriels Modernes, em Paris, em 1925. Teve seu ápice na década de 1930 em todo globo, incluindo as capitais brasileiras – com ênfase no Rio de Janeiro, São Paulo e Goiânia, sendo a última o objeto deste texto.

Luís Paulo Conde, em 1988, definiu os edifícios desse estilo como prédios que são ao mesmo tempo clássicos e modernos. Recebeu influências do cubismo, futurismo, expressionismo e outras vanguardas oriundas das artes plásticas. Além disso, absorve influências de estilos anteriores e contemporâneos. E ainda a classifica em 3 categorias:

 Dessa variedade de influências, resultaram três linhas de obras art déco: a primeira, mais seca e geometrizada, muito próxima do Racionalismo modernista, e conhecida como ‘escalonada’ ou ‘ziguezague’; a segunda, afrancesada, com resquícios acadêmicos e ênfase decorativa, lembrando o Art Nouveau inglês e o austríaco; e a terceira, sinuosa e aerodinâmica, inspirada no Expressionismo, e também denominada ‘streamline’. A primeira e terceira tendências pertencem a maior parte da produção latino-americana e brasileira, em especial edifícios de apartamentos e cinemas. […] No Brasil, pertencem a essa [segunda] linha alguns prédios comerciais e igrejas, assim como certas obras da variante ‘marajoara’ do Art Déco. (CONDE, Luiz Paulo, p. 13)

E ainda sobre sua designação estilística, Conde ressalta:

(…) O Art Déco pode ser classificado com uma das derradeiras manifestações do Ecletismo, ao mesmo tempo que se constitui como uma das primeiras expressões do Modernismo, daí seu caráter ambíguo. E ao contrário do que afirma nossa historiografia, essa transição, definitivamente, não se deu de estalo. Em vez de ‘ruptura’, houve mutação lenta e imperceptível, produzida por protagonistas até hoje quase anônimos. (idem, p. 13)

Em Goiânia, esse estilo adota regras de axialidade, simetria, hierarquia na distribuição da planta, na organização das fachadas e na disposição da volumetria – sendo dividida, na maioria das vezes da seguinte forma: se dá ênfase na fachada do acesso principal, e reparte-se o edifício em base, corpo e coroamento. (CORREA, Telma de Barros, 2008). A edificação, por muitas vezes, estruturava-se por uma composição volumétrica, que integrava formas geométricas como retângulos, cilindros e volumes arredondados, muitas vezes de forma estilizada.

É usada em diversas tipologias de edificação, era empregada onde se tinha o interesse em também representar monumentalidade, principalmente em edifícios institucionais. No entanto, os recursos para, de fato, construir esses recursos cenográficos do estilo era limitado, tornando sua forma com caráter “regional”, e então, as principais inovações feitas eram no programa da edificação, como pontua Correa:

Em parte das construções, as referências à linguagem déco restringiam-se a detalhes ornamentais aplicados em fachadas de construções cujas características – em termos de implantação, tecnologia construtiva, volumetria e organização dos espaços internos – seguiam os modelos mais usuais na época, ainda atrelados fortemente a formas difundidas no período colonial e no século XIX. (CORREA, Telma de Barros, 2008, p. 53)

A praça cívica, lugar onde todos os edifícios pioneiros são em Art Déco, foi tombada em 1980. Porém, o acervo desse estilo presentes na capital foi tombado em 2003.

Sabendo das características do Art Déco e de sua importância histórica, e ainda ser considerado patrimônio cultural da capital goiana, é importante ressaltar que os monumentos não são objetos estáticos, eles sofrem com a ação do tempo, tanto fisicamente quanto em relação a seus usos e sua importância.

Então, para recuperar sua integridade, é necessária, uma intervenção. Sobre o projeto de restauro é importante conceituá-lo como:

 O restauro é entendido como ato de cultura, pautado no respeito pelos aspectos documentais da obra, por sua materialidade e conformação, como transformadas pelo tempo – também naquilo que se refere a consubstanciação de aspectos memoriais e simbólicos na obra -, o todo sendo mediado pelas contribuições de vários campos do saber. É construção sociocultural constantemente sujeita a revisões críticas em função daquilo que é reconhecido como interesse coletivo (KUHL, Beatriz, p.69)

Para ser feito um bom projeto de restauro, Lemos Carsalade, pontua na Revista Patrimonial nº36, elaborada pelo IPHAN (órgão responsável pela gestão e conservação do patrimônio cultural do Brasil) o que de fato deve ser preservado:

  • A “existência” do bem patrimonial, na sua capacidade de se fazer presente;
  • A sua capacidade de pontuar a existência, referenciando-a, a sua especialidade no espaço e no tempo;
  • A sua capacidade de nos atrair e possibilitar uma elaboração sobre ele;
  • A fruição do presente, instituída pela memória, e as possibilidades abertas pelo passado: não é o retorno ao passado, mas a sua vivência no presente;
  • A abertura de significados que a obra de arte (e de resto, mesmo o bem patrimonial não dotado de caráter artístico) “fixou” na matéria e no lugar, e não apenas pelas características objetivas (formais e físicas) do objeto, por – tanto as suas dimensões material e imaterial;
  • A identidade em transformação: a capacidade de mudança do bem, mantendo o equilíbrio dos modos pessoal e impessoal, dentro da dinâmica do tempo e da cultura.

Finalizo o texto com uma reflexão acerca da demolição e descaracterização do acervo Art Déco da capital goianiense: apesar de ter formas regionais e muitas vezes, simplórias, o Art Déco em Goiânia trás consigo a memória da construção da capital, e a tal “modernidade” que tanto sonhavam. É necessário abrir mão desses símbolos para continuar desenvolver a cidade? Não é possível continuar a história sem renunciar o passado? Como diz Carlos Nelson: “Preservar não é tombar, renovar não é pôr tudo abaixo”.

 

 

 

 

Imagem: Heloisa Xavier C. Vieira – para o projeto cidade retalho.

Sobre o(a) Autor(a)

Heloisa Xavier C. Vieira

"costumam me chamar de Helô. Tenho 23 anos e estou terminando a graduação em arquitetura e urbanismo pela PUC Goiás. Minha atual área de pesquisa é a intervenção em preexistencia, com enfoque em patrimônio cultural edificado".
Publicado no Liceu Online por:

Edição - Liceu Online

Revista online de Humanidades. @liceuonline

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