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por Sofia Corso, especial para o LiceuOnline.

Andei pensando esses dias sobre capricho. No sentido de caprichar, agir de maneira primorosa. E não no sentido pejorativo, como uma pessoa mimada que satisfaz seus caprichos egoístas e age de maneira inconstante. Essa reflexão surgiu de duas situações que passei nos últimos tempos. A primeira foi em sala de aula. Algumas alunas obcecadas pelo título perfeito, como esses que vemos no Pinterest. Uma, em específico, quando fui passar uma matéria no quadro, amaçou diversas folhas, porque o título não tinha ficado bom. E eu disse: foca no conteúdo, deixa a perfeição de lado. Mas depois fiquei pensando o quanto aquele título era importante pra ela. Como se, sem ele, ela não conseguisse ter apresso pelo conteúdo. Sem o título perfeito, ela não conseguiria entender a matéria. Errar aquele título seria começar o ano errado, seria motivo dela desistir do ano, desistir de estudar. Apesar de supérfluo, era importante pra ela. A segunda situação advém dos elogios do Bruno à minha comida. Não tem uma vez que eu faça comida, que ele não faça questão de elogiar não só o sabor, mas o prato em si. Em como eu sou caprichosa pra fazer um simples arroz e feijão. Por incrível que pareça, eu nunca tinha pensado nisso. Faço desse jeito porque gosto, porque meus pais faziam assim. Respeito pela comida. Não capricho para agradá-lo, capricho porque sinto prazer em fazer desse jeito.   

No meu filme preferido da Disney, A Espada era a Lei, que conta a história do Rei Arthur, tem uma cena que me marcou muito na infância. Merlin está observando o Wart auxiliando o irmão adotivo a treinar para um torneio. Enquanto Arquimedes, a coruja, critica o desejo do garoto em ser escudeiro e gostar dessa violência deliberada e medieval, Merlin destaca as qualidades do menino, seu talento, seu espirito, sua capacidade de se dedicar de corpo e alma a tudo que se predispõe a fazer. A admiração de Merlin é genuína, e, como mestre de Wart, ela se mostra ainda mais edificante. Essa aprovação me atravessou de muitas maneiras. Uma aprovação que eu gostaria de ter também 

Imagem: Reprodução/Internet.

Quando somos crianças, a busca por qualquer tipo de aprovação, passa por um outro. Geralmente nossos pais. Mas pode ser qualquer pessoa em que depositamos uma carga de afeto. Quando adultos, o ideal seria deslocar essa dependência para nossos próprios desejos, sem a supervisão ou o olhar desse grande outro. Esse deslocamento não é um processo natural. Pressupõe desvincular afeto e consentimento, amor e subordinação. É como se disséssemos: “Mãe, pai, amo vocês! Mas não preciso mais da sua aprovação.”. Esse é um desamparo produtivo, te incita a buscar o certo porque é certo, o que você quer, porque você quer.  

Coisas feitas de forma caprichada, me causam prazer. Principalmente as idiossincrasias do dia a dia. Principalmente essas. Coisas simples, feitas de maneira bem-feita. Como lavar a louça, guardar a roupa, se vestir, fazer comida, e, no meu caso, preparar uma aula, elaborar uma prova, cuidar das plantas, estudar, ler, fazer exercícios físicos. Práticas que, para serem bem feitas, exige atenção plena. Exige presença. Não apenas física, mas de corpo e alma. Limpar a casa porque não existe nada melhor que casa limpa. Arrumar a roupa, para deixar o cotidiano mais fácil. Entender o que tá lendo, para expandir os horizontes. Assistir um filme e se permitir entrar em estado de suspensão, saindo um pouco de si. Ações que sem o olhar opressor do outro, é libertador. 

Estava lendo um texto pra disciplina do doutorado desse semestre sobre Arte Africana, e a autora Célia Maria Antonacci, cita as diversas manifestações artísticas na África, que erroneamente categorizamos como continente. Para Dominique Malaquias, África é uma ideia. Ela pressupõe uma pluralidade muito grande de crenças religiosas, línguas e modos de escrita, organização política e social. Todos esses processos originam, necessariamente, formas distintas de cultura e arte. Na África islâmica, como na Etiópia, a cultura religiosa é monoteísta e iconoclasta, ou seja, não são admitidas representações visuais antropomórficas como totens e estatuetas. Nessa região, as artes visuais são manifestadas na caligrafia sagrada, a Khat, a arte em letra que se faz imagem. No texto, ela escreve:Exercendo as funções iconográfica e ornamental, a caligrafia busca – pelo ritmo e pela cadência, assim como pela policromia suntuosa de tons de ouro e prata – acentuar o lado espiritual do sagrado, que em combinação com as demais cores – verde, azul, amarelo e vermelho – provoca a ilusão de um vitral, e pelo sentido e pela forma hierática conferem ao ambiente sagrado do mulçumano uma dimensão impotente de inteligência e beleza, adequada ao encontro com Deus”.

Imagem: Reprodução/Internet.

Tudo nesse trecho me impressionou. O capricho em produzir a grafia do texto, significa o próprio encontro com Deus. Quando se trata do sagrado, nada pode ser feito de qualquer jeito. Até meu olhar sobre a Capela Sistina ou a pintura corporal indígena, ou o a dança candomblé, tomaram outro significado.  

Podíamos aprender mais com as religiões e seus artistas. Tornar nossos afazeres cotidianos verdadeiros rituais de encontro consigo mesmo. Achar tudo chato é ver o mundo cinza. Insatisfação decorrente da negação do querer, ao mesmo tempo em que não sustenta o que se quer.   

A arte me ensinou que as mudanças se apresentam em forma de linguagem. E linguagem é estrutura de pensamento. Mudar o pensamento, muda a forma como você se comporta no mundo. Quando um movimento artístico surge em decorrência de outro, significa que a própria sociedade mudou sua maneira de enxergar as coisas. Do Renascimento ao Barroco, todo um formato de leitura e interpretação do sagrado se alterou, assim como na Idade Média, ou no Romantismo. Cultura e sociedade mudando de postura frente à ideologia cristã. E o tanto que podemos entender sobre a sociedade brasileira a partir das produções de Aleijadinho e Mestre Ataíde? Não se faz uma igreja como a São Francisco de Assis em Ouro Preto, sem atenção plena, sem zelo e capricho, sem respeito por aquilo que se é e o que acredita.  

Mesmo não sendo cristã, me emociono diante das esculturas de Bernini, das catedrais góticas e das pinturas de Rafael Sanzio. Mesmo distante das crenças e religiões de matriz africana, fico impressionada com os ílèkè’s – Ilekês (colares) que produzem. Nada se comprara a paciência dos budistas ao produzir suas mandalas de areia e nem a beleza zen dos templos xintoístas no Japão. 

Coisas que são feitas com capricho, me arrebatam. Me inspiram a ser melhor, por mim mesma e pelas pessoas que convivem comigo. Essa é minha forma de demonstrar respeito por quem está à minha volta. 

Claro, nem sempre dá. Mas sigo sendo caprichosa dentro dos meus limites e minhas limitações. 

 

Texto citado 

ANTONACCI, Célia Maria. Apontamentos da Arte Africana e Afro-Brasileira Contemporânea. São Paulo: Invisíveis Produções, 2021. [ “África: um hipertexto contemporâneo”, p. 58-67] 

Sobre o(a) Autor(a)

Sofia Corso

Mestra em História pela UFG. Doutoranda em Estética e História da Arte pela USP.
Publicado no Liceu Online por:

Edição - Liceu Online

Revista online de Humanidades. @liceuonline

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