A matriz do conceito de paisagem nos remonta ao Oriente antigo, mais precisamente à China taoísta que, predicando a individualidade a favor do autoconhecimento, fomentou a aproximação do homem à natureza como forma de afastamento do mundo exterior e o encontro de si (MADERUELO, 2013, p. 20). O eremitismo desencadeado levou à apreciação do meio natural de forma a reconhecer nele a beleza e o vínculo indissociável ao ser humano. Como consequência, valores éticos e estéticos eram agregados ao ambiente, progressivamente representado na pintura e na literatura.
O conceito de beleza enquanto valor cultural se aplica ao espaço na definição de paisagem, sendo esta, portanto, variável social e temporalmente segundo a diversidade e mutabilidade das culturas. Na Europa baixo medieval, dentre as possibilidades conceituais que abarcavam a ideia de beleza estavam: a ornamentação, que conduz ao arrebatamento estético; a harmonia das formas, que segundo Pitágoras é o que torna belo qualquer elemento; o valor ético atribuído ao objeto ou ao meio ambiente, que transcende a percepção física, como defendeu Dionísio Areopagita (ECO, 2017, p. 58).
Seria a beleza o preceito da paisagem enquanto atitude humana frente ao meio circundante, e não sua pura estrutura física. Considerando que a beleza tem a ver mais com o olhar sobre as coisas do que com as coisas em si, conforme definiu Augustin Berque (1997), geógrafo, filósofo e orientalista francês, o processo de transformação do espaço em paisagem passaria pela atitude humana frente ao primeiro, uma atitude de afirmação de seus atributos pautada nos juízos culturais, cuja consequência é a paisagem. Sem a assistência da beleza, um espaço não pode ser entendido como paisagem (MADERUELO, 2013).
No Ocidente as primeiras marcas paisagísticas aparecem na antiga Roma. A apreciação da beleza dos lugares, representados de modo descritivo na literatura e na pintura, ganhou um espaço cada vez mais claro em uma sociedade cuja fruição do homem e seus dilemas tomava o centro das discussões, relegando a segundo plano o meio no qual se inseria. O mesmo ocorreu na antiga Grécia, onde mesmo as descrições do espaço eram limitadas. Trazendo as reflexões de Thomas Kesselring (2000), a natureza na antiguidade foi concebida como o princípio de tudo e, de acordo com a perspectiva aristotélica, sendo o homem habitante da natureza e enquanto elemento dela originado, seria portador – assim como todos os demais seres – de uma alma que o anima, concepção que se modificaria no medievo e na modernidade. Ainda que percebida na antiguidade muito mais sob fundamentos metafísicos que emocionais, a natureza, associada ao culto pagão, percebeu-se gradualmente a partir de perspectivas estéticas, e ainda que gozasse de representações que priorizavam a figura humana, o espaço, tanto natural quanto urbano, tinha lugar no segundo plano das pinturas. No âmbito da literatura, o meio ambiente e suas especificidades passaram a consumir um maior número de páginas, ainda que preocupadas mais com a caracterização do que com a exaltação da fauna e da flora.
Seria o campo científico o caminho pelo qual a herança clássica alcançaria o medievo e gestionaria mudanças e permanências, de forma específica por meio da tradição literária que, junto às tradições bíblica e patrística, fez desenvolver a compreensão da natureza nos bestiários e enciclopédias. No Ocidente medieval a natureza foi concebida tal como o homem: como criatura do mesmo Deus criador vivente em um plano externo e superior ao criado. Portanto, os seres humanos e a natureza teriam a mesma origem e estariam compostos pelos mesmos elementos, também presentes em todo o cosmos. Deus, entretanto, teria deixado em cada criatura fragmentos de si, sendo o ser humano a mais sublime das criações por ser a imagem e semelhança do Criador, enquanto que todos os demais seres seriam espelhos divinos. No século XIII, sob o impulso dos frades menores, além da função dada por Deus a cada uma das criaturas tanto no meio ambiente quanto na vida humana, a natureza se tornou instrumento de glorificação divina a partir da exaltação da beleza e da perfeição dos seres criados, caracterizando-se como o momento de deslumbre da concepção paisagística. Nos mosteiros e academias, o conhecimento científico ganhava impulso a partir da retomada aristotélica no século XIII. Foi mediante a fusão de estudos práticos com a teoria herdada do mundo antigo e das escolas árabes que os eruditos do Ocidente começaram a entender o mundo estudando, de modo específico espécies da fauna e flora locais, o que permitiu classificações precisas de funções, famílias, contraindicações e usos medicinais, promovendo uma definição racional e utilitária, sem distanciar-se da semiótica.
O que até então era representado no desenho e na pintura de maneira tecnicamente simbólica, ganhava realismo com a observação, emergindo novas técnicas, como a perspectiva e a luz, assim como novas cores provenientes do conhecimento natural. A riqueza de detalhes das representações de plantas e animais nos herbários, lapidários e bestiários permitiu não somente a expansão dos estudos que se davam nas universidades, mas também possibilitou a difusão de uma nova forma de perceber o espaço. Dos mestres, aos estudantes, artífices e laicos: imersos no cientificismo e, essencialmente, no imaginário, o Ocidente acometeu gradualmente a beleza do entorno, que junto aos juízos simbólicos construíram a paisagem. O controle da natureza, porém, tomou grandes proporções, de modo que o medo do desconhecido deu passo a uma relação de proximidade com o ambiente divino.
Augustin Berque (1997) sustenta que toda sociedade pode ser paisagística, embora nem todas o sejam. Para afirmar a existência de tal conceito em um grupo social, seria necessário, segundo o autor, a identificação de quatro pontos: a existência de termos que se refiram à paisagem; representações pictóricas do meio ambiente, não meramente ilustrativas, mas que busquem a expressão da beleza e das emoções atribuídas ao espaço; uma literatura que, do mesmo modo, não se atenha à descrição, mas que revele a estética do meio; e jardins cultivados por e para o prazer, não se limitando aos fins medicinal ou alimentício. Até a emergência do termo paisagem no século XVII, expressões como lejos e suas derivações na Espanha eram utilizadas para designar o fundo das obras de arte, ou seja, a paisagem como cenário, e também os termos “país” e “horizonte” para designar a paisagem no meio físico.
O uso do termo paisagem se fundamentaria na definição geográfica de um campo de visualização, um espaço composto por diversos elementos, naturais ou humanos, no qual o homem desenvolve sensibilidade e atribui simbolismo. Como espaço entende-se esse todo perceptível no qual o homem e os demais seres se inserem. O lugar, por sua vez, compreenderia os elementos do espaço associados à vida cotidiana, a exemplo dos edifícios. Intrínseco à paisagem, o simbolismo aplica-se e expressa-se no todo: na linguagem, no mito, na arte, na religião, no tempo, no espaço e na natureza, dando explicação ao desconhecido.
Esse homem simbólico da Idade Média cria muros ao redor de jardins para, como no Paraíso e seguindo a prática de proteção das cidades contra invasores, demônios e enfermidades, resguardar os jardins dos perigos e pecados externos, dando lugar ao hortus conclusus (SEBASTIÁN, 2009, p. 25), ou “jardim fechado”. A aproximação à natureza e a compreensão de seu trabalho através da ciência, faziam com que o homem interagisse mais com Deus através da teofania e tornavam compreensíveis suas intenções na vida humana a partir da criação. Entretanto, quanto mais o homem se aproximava fisicamente da natureza para observá-la e entendê-la, mais dela se afastava. Já não se compreendia como parte do meio natural; tampouco seguia explicando os usos dos elementos e os fenômenos à sua maneira metafórica, mas a partir de uma nova consciência espacial na que o ser humano é dominador externo à natureza, conhecedor de todos seus mistérios.
Se a observação implica a desinserção, um afastamento frente ao pertencer, o surgimento das cidades a favoreceu em decorrência da distância promovida do ambiente natural. Nelas se estudava o que se via fora das muralhas, como em um mundo minimamente vinculado ao anterior, fomentando um sentimento de dominação do espaço mas também um reconhecimento estético e ético possibilitado exatamente pelo distanciamento, chamando a atenção para o que até então era cotidiano demais para se contemplado. Esse reconhecimento forjaria a consciência paisagística, associando à natureza novas possibilidades e necessidades, como o prazer que se encontra nos jardins.
Segundo María Teresa Rodríguez Bote (2014, p. 372), “a paisagem requer de uma interpretação emocional, uma relação entre sujeito e objeto estabelecida através do olhar e que dê lugar a um sentimento”. Aplicado à arte medieval, a paisagem seria fundamental para a expressividade das cenas já que, ao deixar de ser um simples fundo ilustrativo, ajudando na identificação do lugar da cena e de sua interpretação, começou a priorizar a estética da proporção e do arrebatamento, permitindo a transmissão ao observador das emoções propostas pelo artífice e/ou pelo solicitante da obra. Portanto, a paisagem falaria aos fiéis, transmitiria uma ideia através do diálogo emocional. Seria apenas no século XVIII que se originaria a paisagem como gênero pictórico, não como fundo do protagonismo humano, mas como o primeiro plano nas obras.
Como em um processo de causa e consequência, a natureza, linha tênue entre espiritualidade e racionalismo, ganhou as artes tanto por ser inspiração às formas e ornamentos arquitetônicos e escultóricos em sua plena representação, como por ser matéria prima e indicadora estrutural por meio de sua engenharia. A natureza tinha muito o que ensinar ao ser humano, e ele era consciente disso. Do conhecimento prático do campo ao conhecimento teórico dos centros de estudos, os medievais compreendiam cada vez mais o entorno natural, retirando dele possibilidades que seriam aplicadas às cidades. A produção religiosa em imagens, retábulos, vitrais, pintura, arquitetura e inclusive na música inovou ao receber a harmonia encontrada no universo pelas universidades, o ordenamento perfeito das notas musicais ou ângulos que teriam influência direta no som ou a receptividade visual do que se apresentaria aos fiéis, um fator importante, portanto, ao que seria a atração sensível dos cristãos à fé, por meio da estética. Simultaneamente, surgiam novas paletas de cores junto às formas e técnicas, tornando ainda mais identificáveis os elementos representados nas obras ao atribuir movimento e expressão aos personagens. Flores, árvores, animais reais e fantásticos eram recorrentes nas produções da Baixa Idade Média, retomando, ainda mais forte e com mais recursos, aspectos românicos criticados pela reforma cisterciense, sem abrir mão de seu assíduo conteúdo metafórico.
A perspectiva paisagística, difundida no Oriente particularmente através das religiões e no Ocidente através dos estudos científicos, chegaria à Península Ibérica por meio da Escola de Tradutores de Toledo, da Universidade de Salamanca (1220) e da influência da pintura flamenga com artistas itinerantes, precursores da representação paisagística do meio ambiente, a saber, a elaboração de uma arte na que a natureza e as cidades tinham sua beleza enfatizada e, além disso, expressasse uma sensibilidade transcendente à representação pura da realidade. Para isso, o desenvolvimento técnico emergente, entre outras regiões, na Península Itálica e Países Baixos no final da Idade Média, foi primordial.
Por fim, nos cabe destacar as bases fornecidas pela História das Emoções para entender como os sentimentos, assim como a perspectiva paisagística que abarca diretamente as emoções, provêm de processos sociais que conduzem ao desenvolvimento distinto de tais elementos de acordo com as especificidades culturais, envolvendo a forma como cada grupo descobre e utiliza a sensibilidade frente aos acontecimentos e ao espaço. Paralelamente, nos deparamos com a História Sensorial, que busca o aprofundamento histórico através da compreensão dos usos específicos dos sentidos em cada sociedade. A frieza do interior das catedrais góticas, por exemplo, somada às suas grandes alturas, buscava evocar temor a Deus em contraposição à pequenez humana; da mesma forma, a luz que irradiam os vitrais abraçaria os fiéis como sendo a própria luz divina. O manejo emocional – e sensorial -, portanto, abriria-se à apreciação estética sumamente a partir do século XIII, levando a uma nova forma de ver e se relacionar com o meio circundante.
Referências Bibliográficas
BERQUE, A. En el origen del paisaje, Revista de Occidente, (189), 7-21, 1997.
ECO, U. História da Beleza. Rio de Janeiro: Record, 2017.
KESSELRING, T. O conceito de natureza na história do pensamento ocidental. Episteme, 11, (jul. /dez.), 153-172, 2000.
MADERUELO, J. El paisaje. Génesis de un concepto. Madrid: Abada Editores, 2013.
RODRIGUEZ BOTE, M. T. La visión estética del paisaje en la Baja Edad Media. Medievalismo, (24), 371-397, 2014.
ROSENWEIN, B. H. Emotional Communities in the early middle ages. New York: Cornell University Press, 2006.
SEBASTIÁN, S. Mensaje simbólico del arte medieval. Madrid: Ediciones Encuentro, 2009.
Imagem de capa: Galleria Veneziani (Incollect).
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