Na tradição cristã lugares, imagens e objetos serviram como elementos de “reevocação” de um passado memorável, que se desejava perpetuar. Entre esquecimento e lembrança consolidou-se o que deveria ser permanente, eterno. Esta demanda pelo passado deu ao cristianismo seus primeiros alicerces, solidificando-se os lugares santos e os personagens memoráveis, que constituem sua identidade. Cristo e seus discípulos, considerados fundadores das primeiras comunidades, são modelos essenciais na construção de uma história que se deseja sublime. Inicialmente perseguidos os cristãos voltaram-se à veneração dos restos sagrados de seus mártires, elevados a heróis da fé, aqueles que venceram a morte, pois através de sua matéria realizaram-se milagres. Esta santidade daria nova vida a uma materialidade teoricamente morta. Elos entre vivos e mortos, as relíquias representam a memória e a presença física, mesmo fragmentada, por meio das quais é possível tocar na sacralidade. Daí o significado das sepulturas, dos monumentos e dos objetos que emanavam santidade. Não se trata apenas da memória, mas da própria pessoa; não da lembrança, mas da presença. O valor atribuído a estas era simbólico e material. Quanto mais importante a relíquia, mais valor de mercadoria ela tinha. Entre estas os objetos ligados à vida de Cristo, e os corpos dos apóstolos são as de maior relevância.
Conforme o Evangelho de João, Capítulo 1: 14 “E o Verbo se fez carne e habitou entre nós, e nós vimos a sua glória, glória que ele tem junto ao Pai, como filho único cheio de graça e de verdade.” A encarnação é matriz fundamental presente na narrativa bíblica, e estabelece concretamente uma articulação entre o espiritual e o físico. Conforme Jérôme Baschet (2019), a ênfase na humanidade do Cristo não diminui sua divindade. Ao contrário, ela contribui, para exaltar uma natureza divina, mantida intacta à despeito de todas as humilhações e de todas as contingências humanas às quais ela se encontra relacionada.
Estar próximo a estes sagrados despojos reforçava a crença em seu poder miraculoso. O território regado pelo sangue dos mártires e santos simbolizava a consagração do local. Daí as celebrações, as peregrinações e o aparecimento das relíquias por contato, objetos santificados através da proximidade e sacralidade de seu possuidor. A multiplicação destes fragmentos foi enorme, o que não diminuiu seu valor para os fiéis. A forma de vivência do sagrado também está inserida em um projeto institucional de legitimação, e manutenção do poder político. “A implantação territorial do cristianismo fez- se por modos complexos de apropriação sacral de espaços reais e imaginados, em que avultavam a descoberta de corpos santos, e imagens…” (ROSA, 2011: 388). Comportamentos e estratégias diversas, necessárias à consolidação da superioridade de reinos e cidades, frente às muitas disputas. A conservação de um acontecimento declarado como inesquecível fomentou a identidade cristã, possibilitando uma reconstrução, uma remodelação de recordações.
Neste âmbito inserem – se as relações entre o material e o espiritual, presentes no ato do morrer. Os vestígios especiais são bens de natureza material, mas que produzem riqueza espiritual. União lícita entre céu e terra, que se torna concreta através dos corpos santos, e de objetos que pertenceram a personagens sublimes. Produtores de memória os restos mortais presentificam a essência da santidade, que poderia ser concreta, tocada, sentida. Os fragmentos santos foram então considerados ferramentas de Deus, na distribuição de sua graça. O simbolismo de um espaço sagrado, ressignificado através das relíquias, o torna qualitativamente diferente dos demais.
Imagem de capa: Entry of Christ into Jerusalem (1320) by Pietro Lorenzetti
Referências Bibliográficas
ÁLVAREZ, Maria Raquel A. & NASCIMENTO, Renata Cristina de Sousa. A Sacralização do Espaço Ibérico: Vivências Religiosas na Idade Média. Curitiba: CRV, 2020
BASCHET, Jérôme. Corpos e almas. Uma história da pessoa na Idade Média. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2019.
OEXLE, Otto Gerhard. A Presença dos Mortos. In BRAET, H & Verbeke, W. (eds) A Morte na Idade Média. SP: Edusp, 1996. p 31.
NASCIMENTO, Renata Cristina de Sousa. A Cristianização do Espaço: O Protagonismo da Vera Cruz em Marmelar. In Revista Tempos Históricos, Volume 20. Unioeste: 2º Semestre de 2016. p. 133-146. http://e-revista.unioeste.br/index.php/temposhistoricos/article/view/15737/10691
ROSA, Maria de Lurdes. Sagrado, Devoções e Religiosidades In MATTOSO, J. (Direção). História da Vida Privada em Portugal- A Idade Média. Lisboa: Círculo de Leitores, 2011. pgs 376- 401
This Post Has 0 Comments