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por Gabriel Cossil, especial para o LiceuOnline.

Introdução

«Da mesma forma que nós, alemães, dificilmente teríamos um Kant, sem a Idade do Iluminismo, assim também os gregos dificilmente teriam um Sócrates ou uma filosofia socrática, sem os sofistas» – é esta a sinopse, extraída de Eduard Zeller, que W. K. C. Guthrie usa em sua obra The Sophists,1 parte do terceiro volume da sua monumental A History of Greek Philosophy, referência nos estudos helenistas.

Ler essa frase, essa sentença, e olhar para a atualidade das discussões em torno dessa classe de professores é algo bastante contraditório. Como que Sócrates, Platão e Aristóteles não existiriam sem os sofistas, se aqueles foram objetos perpétuos de críticas destes? De modo simplório, realmente não faz sentido; mas, analisando melhor a situação, encontramo-nos facilmente. Mesmo que se tome os sofistas como uma classe repugnante, mentirosa, que tratava apenas de despejar “sofismas” e mentiras, ainda assim deveríamos considerá-los um inimigo de peso para os socráticos: ora, ainda que se considerasse tudo isso, negativamente, a filosofia socrática, “o lado positivo” daquele período, só surgiria, então, como uma reação àquela filosofia mentirosa, sofística, “filodoxa”.

E assim, logo de cara, chegamos a uma conclusão: mesmo despidos de qualquer importância ou validade em suas filosofias individuais, como grupo, como movimento, como proposta, os sofistas serviram, se não para desenvolver temas frutíferos de valor declarado, de inimigos à alvorada socrática que teve início no século V a.C. Como, sem sombra de dúvidas, não é aí que reside a importância dos sofistas – um mero inimigo em potencial, um mero contrapeso, uma mera rivalidade –, far-se-á necessário uma exposição geral do que convencionou-se chamar de escola, período e até filosofia, mas que seria melhor definido por “movimento”: o movimento sofístico.

A origem dos sofistas

A palavra “sofistas” deriva do grego sophistes que, por sua vez, deriva do verbo sophos, originalmente traduzido por “sábio”. “Sábio” e “sofista” foram, por muito tempo, sinônimos, denotando que, originalmente, os sofistas eram considerados homens sábios: não tinham ainda nenhum teor pejorativo.

A palavra sofistas não teve, originalmente, o sentido pejorativo que lhe impôs Platão. Os sofistas foram, na verdade, reputados como grandes mestres, e a eles acorriam quantidades de jovens bem-nascidos, dispostos a pagar muito dinheiro para aprender o que eles apregoavam ensinar (Maura Iglésias em REZENDE, 2005, p. 37).

Se, no seio do pensamento social e cultural grego, os sofistas já surgem desempenhando um papel de valor, fica implícito que a má fama dos sofistas não é algo que surge da sua atividade em si, mas sim de um processo gradual de crítica e deslegitimação das atividades de quem se intitulavam dessa forma. É motivo de confusão, ainda, a percepção comum de que a palavra “sofista” só surge com a entrada definitiva dos sofistas em Atenas. Não é que sophiste seja uma criação para atender uma nova modalidade educacional, mas sim a modalidade educacional que estava atendendo à uma demanda já existente na época. “Sofista” só ganha um título, digamos, formal, tempos depois em que o conceito já rodava em toda a literatura grega.2

Em Heródoto, Aristóteles e Isócrates, o termo sofista é aplicado, mais de uma vez, a personalidades que, posteriormente, não mais seriam consideradas como tal. É sabido, portanto, que tanto na literatura, história e filosofia grega quanto no imaginário popular, sophistes foi só mais uma palavra para denominar um sábio e não tinha, até então, ligação com as características que iriam definir um sofista como Protágoras, por exemplo. Se, então, ao menos o conceito lexicógrafo já estava em maturação dentro da sociedade grega, as práticas de ensino e meios de instruções dos sofistas não estavam, necessariamente, em plena harmonia com o termo que lhes designavam. Talvez esse seja um dos motivos para a classe de professores terem sido, paulatinamente, bestializadas dentro do âmbito social. Descobrir o motivo desse processo negativo em relação aos sofistas exige, portanto, uma breve explanação biográfica e histórica de seu núcleo de atuação.

Quem foram os sofistas?

Os sofistas foram um grupo de sábios professores que percorriam as cidades ensinando – mediante pagamento – a arte da retórica e da excelência moral aos mais interessados. Tudo o que temos destes professores e mestres são fragmentos (de suas obras, diálogos, cartas etc.) e citações; não podemos, portanto, saber com clareza o que pensavam – nem o que era de fato pensamentos deles ou de terceiros. Os principais expoentes dos sofistas foram curiosamente os seus principais adversários teóricos, Platão e Aristóteles.3

Os sofistas ganharam fama na maior cidade da Grécia antiga, Atenas, que na época passava a se tornar um grande centro comercial, cultural e político. Todos os sofistas eram estrangeiros, e isso não é de se impressionar: a própria filosofia grega é antes estrangeira do que ateniense. Isso denota que Atenas, a grande cidade de Péricles, foi antes um ponto de encontro enciclopédico do que um vetor de produção cultural. O que determina as características fundamentais dos sofistas será discutido neste artigo, mas ainda resta duas palavras sobre a visão geral desse grupo. Além de estrangeiros os sofistas eram, de forma pejorativa, “andarilhos”, pois não tinham lugar fixo, cidade ou genealogia familiar. Eram professores, filósofos e oradores que viviam de cidade em cidade e, portanto, não eram cobertos pelas previsões legais e constitucionais das cidades pelas quais percorriam, principalmente Atenas. Aí já vemos um claro exemplo da fragilidade cívica dos sofistas que, junto com o crescente repúdio por meio da sociedade, chega a torná-los vítimas antes de “vilões”. É nesse sentido que a defesa de Isócrates traz uma cor genuína e sincera a respeito do labor sofístico:

A melhor e maior recompensa de um sofista, diz ele, é ver alguns de seus alunos se tornar cidadãos sábios e respeitados. Reconhecidamente, há alguns maus sofistas, mas os que fazem uso adequado da filosofia não devem ser culpados pelos poucos carneiros pretos. […] Nenhum deles, diz ele, fez grande fortuna ou viveram senão modestamente, nem mesmo Górgias que ganhou mais que qualquer outro e era solteiro sem nenhum laço de família» (GUTHRIE, 2007, p. 38).

Movimento ou escola?

O título desse presente artigo deixa enfatizado os sofistas como partícipes de um movimento, mas não deixa de ser um debate bastante frutífero saber se os sofistas formavam um movimento ou uma “escola”, se seus pensamentos compartilhavam uma raiz em comum ou se poderíamos considera-los “apenas” um grupo com similaridades pontuais – embora não definitivas. Comecemos pela tese “escolástica”.

Quando falamos em “escolas filosóficas”, principalmente na Antiguidade, não queremos nos referir às instituições físicas, embora estas tenham surgido já na Grécia antiga (v.g. Academia de Platão e o Liceu de Aristóteles). Falamos, isso sim, dos núcleos de pensamento em comum, de sucessões intelectuais, de modo que o termo “corrente filosófica” seja mais palatável. Surge daí exemplos clássicos como a Escola milesiana (Tales, Anaximandro e Anaxímenes de Mileto), a Escola eleática (Xenófanes, Parmênides, Zenão) ou a Escola pitagórica (Pitágoras, Filolau, Alcmeão). A mais famosa é, sem dúvidas, a Escola platônica, que não só moldou o espírito educacional e escolar da civilização ocidental como também legou, até o século XVIII, um modelo de educação humanístico que, infelizmente não resistiu aos ditames da padronização secular.4

Esbarramos, entretanto, em um problema conceitual: da mesma forma que é difícil encarar, sem anacronias, uma filosofia propriamente dita em tais épocas, é bastante problemático agrupar tais filósofos em grupos escolares que possuam um núcleo e uma sucessão em comum. Tendo em vista o que caracteriza uma escola, tal atribuição aos sofistas (a de que formavam uma escola) parece impossível – ou no mínimo improvável. Podemos dizer, sem sombra de dúvidas, que os sofistas tinham entre si uma influência mútua – afinal realizavam o mesmo oficio –, mas daí concluir que eles formavam uma escola é perigoso, já que isso traria à sua análise uma faceta que não fazia parte da realidade vigente.5 A interpretação dos sofistas como um movimento é, ao que parece, a mais correta, visto respeitar tanto as aproximações quanto os distanciamentos da filosofia, do método e da compreensão sofística, já que «nesta aplicação mais ampla, é perfeitamente justificável falar de mentalidade sofistica ou de movimento sofista no pensamento» (GUTHRIE, 2007, p. 49). Faz mais sentido, portanto, considerá-los como um movimento e, só profundamente, uma filosofia propriamente dita – caso recortemos apenas partes de seus pensamentos e tentemos realizar paralelos, às vezes contraditórios, a fim de estabelecer uma hegemonia.

Os sofistas

Protágoras (490-422 a.C.)

Protágoras é, em Platão, “o pai dos sofistas”, e protagoniza na história da filosofia grega posição de importância e pioneirismo. É o primeiro a se intitular sofista e também a cobrar pelos seus ensinamentos. Nascido em Abdera, cidade da região nordeste da Grécia, berço também do filósofo Demócrito, por volta de 490 a.C., Protágoras é amplamente reconhecido pela sua célebre frase «o homem é a medida de tudo, do que é de que é, do que não é de que não é» (DK 80 B1, trad. em LEÃO, 2017). De certa maneira, tal frase aponta para o relativismo radical, e foram nessas raízes que tal filosofia ganhou sua maior potência.

Protágoras, acusado de ateísmo, teve de fugir para a Sicília, onde morreu por volta dos 70 anos de idade, cerca de 420 a.C. Diógenes Laércio (KURY, 1987 p. 256) apresenta um catálogo com os títulos de suas obras, o que é incerto. É quase certo, entretanto, o título de duas das suas obras: A verdade, onde a célebre frase do “homem como medida” é extraída, e “Antilogiai” («antes de qualquer incerteza duas teses opostas podem ser validamente confrontadas»). Há também a chance de ter escrito um livro chamado Sobre os deuses, onde ele fixa o seu pensamento agnóstico – o que se calcula ter sido a obra responsável por sua perseguição pública. É protagonista do diálogo platônico Protágoras, onde discute, com Sócrates, questões acerca da virtude e da possibilidade ou não de seu ensinamento.

Sobre Protágoras, CAPELLE (1992, p. 199) nos diz:

O significado fundamental de Protágoras na história da filosofia grega pode ser expressado em poucas palavras, ao dizermos que, por meio do relativismo e do subjetivismo de Protágoras, o problema do conhecimento não apenas surgiu, mas tornou-se, se não o mais importante, ao menos um dos principais do pensamento grego» (tradução minha).

Górgias (483-380 a.C.)

Górgias, filho de Carmantides, nascido em Leontinos, na Sicília, por volta de 490 a.C., foi um dos filósofos que, junto a Protágoras, formou a primeira geração dos sofistas. Foi contemporâneo de Protágoras e a maioria das fontes atestam que viveu até idade avançada. Górgias destacou-se como orador e retórico, de modo que confiava na objetividade da elocução. Segundo ele, «a persuasão aliada as palavras modelam a mente dos homens como quiser». Durante sua vida esteve muito interessado em divulgar seu conhecimento, o que o levou a discursar em várias cidades e, sobretudo, nos grandes centros pan-helênicos como Olímpia e Delfos. Segundo Giorgio Colli, na Encicopledia de los maestros,

«Górgias se apresenta aos gregos com o seguinte desafio: me interroguem, eu responderei. Ele pode provar tudo e convencer a todos» (tradução minha).

Retórico polêmico, Górgias estreou um ceticismo radical que marcou toda a filosofia grega. Entre suas (prováveis) obras escritas estão Technai – um manual de instrução retórica, Defesa de Helena e Defesa de Palamedes – que provavelmente seriam exemplos desse manual de retórica –, além de outras obras sobre política, arte etc. É creditado como autor do tratado irônico Sobre a natureza e a não-existência, que conturbou profundamente toda a filosofia eleata.

Górgias parece ter sido o único sofista que não aspirava ensinar a areté, isto é, a excelência moral. Dizia ele que apenas ensinava os logoi – a retórica – já que, para ele, dominar a retórica valia por qualquer outra coisa – o que casa bem com a sua filosofia cética onde tudo é relativo à argumentação. Tal abstenção de ensinamento moral foi motivo de elogio por parte de Sócrates. Também tem, na obra platônica, um diálogo que leva seu nome, Górgias, diálogo onde Sócrates o refuta. GUTHRIE (2007, p. 254) descreve sua influência da seguinte maneira:

A influência de Górgias foi considerável, sobretudo com certeza sobre o estilo literário, o que foi sentido por escritores tão diversos como o historiador Tucídides e o poeta trágico Agatão. O seu aluno mais famoso foi Isócrates.

Hípias (430-343 a.C.)

Hípias, nascido na cidade da costa mediterrânica chamada Elis, foi um dos mais famosos dentre os sofistas. Homem viajado, erudito, Hípias é uma figura diferenciada na esteira do pensamento sofista, e por isso merece nossa atenção. Segundo GUTHRIE (2007, p. 261):

[Hípias] Era evidentemente alguém que absorvia aprendizado fácil e rapidamente, o que exigia dons altamente intelectuais em alguns aspectos. Assuntos que estava preparado para ensinar incluíam astronomia, geometria, aritmética, gramatica, ritmo, música, genealogia, mitologia e história, inclusive história da filosofia, e matemática.

Vale à pena, ainda, observar na trajetória de Hípias um destaque importante à investigação histórica. Hípias aborda, em suas investigações históricas, descobertas importantes para a ciência histórica. Diz ele que «a palavra tyrannos não foi usada antes do tempo de Arquíloco»; expõem também o «talento militar de Licurgo» e publicou uma lista de vencedores olímpicos. Ainda, em uma análise antropológica, «diferiu [de] Píndaro sobre o nome da madrasta de Frixo e afirmou que os continentes da Ásia e Europa foram chamados por estes nomes depois de Ocêanidas» (todas as citações em GUTHRIE, 2007, p. 262s).

Seu interesse pelo rigor histórico é muito bem expressado por Clemente de Alexandria, quando comenta uma obra escrita por Hípias, Synagogé:

Pode ser que alguma coisa disso foi dita por Orfeu, algumas brevemente, aqui e ali, por Museu, algumas por Hesíodo e algumas por Homero, algumas em outros poetas e algumas em escritores em prosa tanto gregos como estrangeiros. De minha parte, colecionei de todos estes escritores o que é o mais importante e se refere mutuamente para fazer esta obra nova e composta» (Fr. 6 de Clemente de Alexandria em Stromata 6.15 (II 434 St.) apud GUTHRIE (2007, p. 262).

Um pensamento sofista?

Os pontos de interesse comum entre os sofistas são variados, mas é certo que a retórica – ou a arte do lógos – estava entre as suas principais matérias. A cobrança pelos ensinamentos, as apresentações públicas (palestras) e, por fim, a perspectiva filosófica geral pautada na antítese phýsisnómos eram outros pontos de encontro entre os sofistas, sem levar em conta o relativismo, ceticismo e humanismo. A principal matéria dos sofistas buscava introduzir o cidadão às discussões relacionadas à pólis (eq. a “cidade”). Sua profundidade está, entretanto, centrada na condição humana: bem como a pólis “entendeu” que era hora de o povo decidir, o povo entendeu que era hora de o político aprender. A abertura humana para o aprendizado humano parece estar em consonância com a própria aprendizagem clássica – tomando-se, aqui, um sentido propriamente homérico.

GIORDANI (1972, p. 350), com base em outros autores, caracteriza a hegemonia do pensamento sofista elencando quatro pontos em comum: (1) o relativismo – já que os sofistas não se preocupavam com a busca de algo estável e permanente –, (2) o subjetivismo – visto que não existia uma verdade absoluta, objetiva –, (3) o ceticismo6 – que ganha sua maior maturidade com Górgias – e (4) o humanismo – a concentração nos problemas humanos como um interesse mais genuíno e mais importante etc. O ensinamento sofístico vai, portanto, além da mera esfera teórica da retórica e da esfera prática da política pública: ele também dá ênfase às políticas privadas. O homem que não administra bem sua casa, sua família e os seus negócios provavelmente não administrará bem uma cidade, uma expedição militar ou um julgamento.

Os sofistas invadem Atenas

A entrada dos sofistas no meio ateniense não veio como uma “revolução”, mas antes como uma evolução, uma urgência demandada pelo próprio advento da democracia. Eles não foram, entretanto, os primeiros sábios a compor uma lacuna intelectual na cidade: ora, desenvolver um modelo sócio-político tão sofisticado só poderia ser feito por mãos também sofisticadas. Paralelamente a isso surgia a sabedoria filosófica, investigativa, aquela filosofia natural que Sócrates expressa no Fédon: «Quando eu era moço, sentia um desejo extraordinário de conhecer aquela ciência, a que chamam investigação da natureza: porquanto parecia-me excelente saber as causas de todas as coisas – porque é que elas nascem, perecem e subsistem…» (apud GIORDANI, 1972, p. 356). O principal representante dessa nova filosofia em Atenas é Anaxágoras, primeiro filósofo da tradição jônica e mestre de Péricles, que viria a ser o maior estratego da então Atenas clássica.

Como já supracitado, a democracia foi um evento importantíssimo para a entrada dos sofistas no meio ateniense,7 de modo que seu convencionalismo jurídico, seu oportunismo político e suas indiferenças morais e religiosas combinaram bem em uma época onde se esperava do político não mais as emoções acaloradas. Outro fator que impulsionou o senso prático e imediato, na política e na sociedade, foi a crescente ameaça oriental implodida nas Guerras Médicas: a próxima geração de gregos nascera com um grande problema no seu quintal, a saber, o Império Aquemênida. É surpreendentemente na tensão sofística-socrática que surge um ideal temido e respeitado em toda a Antiguidade. JAEGER (2013, pp. 336-339ss) pontua muito bem essa virada de paradigma no meio ateniense:

A nova sociedade civil e urbana tinha uma grande desvantagem em relação a aristocracia, porque, embora possuísse um ideal de Homem e de cidadão e o julgasse, em princípio, muito superior ao da nobreza, carecia de um sistema consciente de educação para atingir aquele ideal. […] Cedo se fez sentir a necessidade de uma nova educação capaz de satisfazer os ideais do homem da pólis. […] Por mais forte que fosse o sentimento da individualidade, era impossível conceber que a educação se fundamentasse em outa coisa que não a comunidade da estirpe do Estado. O nascimento da paideía grega é o exemplo e o modelo deste axioma capital de toda a educação humana. […] Talvez o aparecimento de grandes individualidades espirituais e o conflito da sua apurada consciência pessoal não tivessem dado origem a um movimento educacional tão poderoso como o da sofistica – que pela primeira vez estende a vastos círculos e dá publicidade total a exigência de uma areté baseada no saber – se a própria comunidade não tivesse sentido já a necessidade de ampliar os horizontes citadinos pela educação espiritual do indivíduo.

Outro fator importante para o aparecimento dos sofistas, além do advento da democracia, foi a profunda dessacralização que ocorreu dentro daquele povo. A religião grega diante dos ataques calorosos de Xenófanes: tudo isso culmina com o relato de Tucídides sobre a descrença divina por conta da peste de Atenas. Não que o povo deixasse de ser religioso, ou que o Estado passasse a ser laico, mas sim que a dessacralização dos deuses fez com que os sofistas discutissem, por exemplo, temas como as leis, o estado de natureza, a linguagem e a filosofia política. Ora, é aí que Protágoras diz que não se pode falar sobre os deuses (DK 80 B4), um razoável agnosticismo.

Parece que dessa fenda, dessa abertura no seio religioso, surge, justamente, não o fenômeno sofístico em si, mas sim a sua possibilidade de expansão e sua fácil adesão no meio grego, que veio a se confirmar logo em seguida. Não foram os sofistas os responsáveis pela “humanização” dos gregos, mas sim os gregos, diante das necessidades cada vez mais práticas, que tiveram a necessidade de serem instruídos politicamente. É desse mesmo fluxo reflexivo que um Demócrito ou um Epicuro pôde surgir, pois muito difícil seria uma dessacralização desse tipo – ao menos no meio teórico – caso o impacto dos sofistas não competisse com o impacto de um Sócrates e principalmente com o impacto de um Platão.

A crítica socrática

Platão responde os sofistas

A crítica socrática-platônica foi decisiva para a má fama dos sofistas, embora não tenham sidos os primeiros a criticar tal modo de ensino. Platão, que descreve os sofistas como charlatães, muito por influência direta de seu mestre, incorre, entretanto, numa crítica parcial, e deve ser analisado com seu devido cuidado. Nem se quisesse Platão poderia abordar o movimento sofista em sua completude, tendo em vista que grande parte do ensinamento sofista se dava de forma particular. Extrair um julgamento de valor apenas por conversas, obras ou linhas de pensamentos acarreta em uma simples pergunta: e se os sofistas foram, mesmo, filósofos medíocres, mas ótimos professores?

Nessa mesma linha de raciocínio chegamos à uma reflexão importante: se o nível filosófico e intelectual da Grécia antiga era alto demais, duas coisas poderiam acontecer: ou (1) os sofistas estavam muito abaixo do nível de um Sócrates ou Platão ou (2) eles discordavam filosoficamente. Se a desigualdade se mantém no reino qualitativo, é difícil, nós, julgarmos, visto que a mesma qualidade atribuída àquela época não residia apenas nos socráticos. Isso seria o mesmo que dizer que Sócrates, Platão e Aristóteles formam o início da filosofia, e que toda a tradição predecessora e contemporânea não tinha influência em seus pensamentos. Se, assumindo a segunda possibilidade, que julgo a mais correta, as críticas partiam primariamente de uma discordância no âmbito filosófico, ainda assim isso não qualificaria os sofistas como “mentirosos” ou “enganadores”. Não obstante a isso é compreensível a crítica de Platão quando observamos o contexto de seu ataque: uma Atenas devastada – segundo ele – «pela alienação política, filosófica, religiosa e cultural», visto que todos os líderes e expoentes do povo tinham como único objetivo a manipulação pelo discurso – tanto que Platão os considerava “mestres da oratória”, mas não duma oratória verídica e sim de uma oratória “alienativa” que tinha como principal objetivo a manipulação.

Outro ponto enraizado na crítica platônica é o fato de que os sofistas recebiam pelos seus ensinamentos. Ora, em uma Atenas cujo a “capitalização” da política já havia ocorrido – com o pagamento realizado sob o comando de Péricles para que os cidadãos participassem das atividades na Assembleia –, não seria motivo de espanto que professores passassem a fazer isso. Ao que parece a crítica platônica assentava-se não sobre o método, e sim sobre o conteúdo. GUTHRIE (2007, p. 41s) resume bem o cenário:

Estamos acostumados a pensar o ensino como um modo mais respeitável de ganhar a vida, e não havia na Grécia nenhum preconceito contra ganhar a vida como tal. Sócrates era filho de cortador de pedras e provavelmente seguiu o mesmo negocio […]. Poetas tinham sido pagos por seu trabalho, de artistas e doutores se esperava que fossem pagos pro sua atividade e por ensiná-las aos outros.

Não que o pagamento pelo trabalho de alguém fosse o problema em questão, mas sim o conteúdo do trabalho e, sobretudo, a qualidade do trabalho – sua qualidade só crescia à medida que a finalidade se encaminhasse para o Bem –, já que a crítica «parece ter-se voltado para a espécie de assuntos que os sofistas professavam a ensinar, especialmente a areté» (Ibid. p. 41s). O grande feito dos sofistas não foi, portanto, terem “capitalizado” a própria educação, e sim darem-na status de “produto”. Se, antes da alvorada sofística, a areté não poderia ser ensinada, sua “produtificação” fez dela possível de ser produzida, embalada e vendida, em larga escala.

Fazer da educação e do ensinamento um “produto” foi o único meio possível para a humanização do próprio ensino: os sofistas tiraram as matérias de conhecimento do Mundo das Idéias e as colocaram no plano terrestre, no Mundo das Práticas; deram-na valor, duração, tamanho; as lançaram pelos quatro cantos da Hélade. Cobrar pelo ensinamento não só deu à educação um valor maior – visto que, naturalmente, o homem tende a valorizar mais aquilo que lhe é cobrado – como também fez com que o ideal aristocrático, enraizado na pedagogia platônica, fosse deixado de lado. Não importava mais aos homens a sua classe inata, se era guerreira, laboriosa ou reflexiva; não importava mais a reminiscência, a metafísica, os estudos iniciáticos até a plenitude e maturidade para o bem governar, para o bem deliberar: o grande feito dos sofistas e, por isso mesmo, o grande problema para o pensamento platônico não só foi a reorientação do cosmos para o homem, da natureza para a humanidade, mas principalmente a indiferença frente aos problemas metafísicos, frente à própria Metafísica, que legou à história do pensamento humano a praticidade que as questões precisavam ter: foi o rompimento com o abstrato que deu fama aos sofistas como individualistas e relativistas extremados.

Aristóteles responde os sofistas

Enquanto as disputas filosóficas e intelectuais eram travadas na então Atenas clássica, Aristóteles ainda era um jovem rapaz de uma nobre família que avançava em seus estudos. Quando, em ~368 a.C., após a morte de seus pais, Aristóteles foi enviado para Atenas, a fim de concluir seus estudos, mal sabia das disputas entre Sócrates e os sofistas. Naturalmente, passados vinte anos como pupilo de Platão, o Estagira estaria contra os mestres da oratória. Assim se segue a crítica aristotélica.

Aristóteles definiu a “sofística” como «a sabedoria aparente, mas não real». Para ele, os sofistas ensinavam a argumentação a respeito de qualquer tema, até quando os argumentos não eram válidos. Os sofistas, segundo Aristóteles, não estavam interessados em procurar a verdade, mas sim no refinamento da arte de vencer discussões (retórica), já que a verdade era relativa de acordo com o local e tempo em que o homem estava inserido, sendo mais vantajoso o ensino da discussão e argumentação ao invés da investigação e comprovação. Tais definições são, entretanto, parciais. Não só houve entre os sofistas personalidades importantes que não buscavam ensinar a excelência moral – como Górgias –, como outros que também abordavam questões cosmológicas, epistemológicas e até psicológicas. Enquadrar os sofistas como meros “propagadores de falsos argumentos” incorre no mesmo problema de formatá-los em uma escola de pensamento, como se eles nunca divergissem. Talvez uma das características mais notáveis dos sofistas fosse justamente suas divergências, o que deu início a um ágon (conflito, disputa) filosófico genuíno e rico numa sociedade que já estava amadurecida para o debate filosófico.

O problema aparece, portanto, primeiramente como uma excessiva “generalização”, depois como uma interpretação parcial e, só por fim – para sermos razoáveis – como uma falta de conhecimento do caso. Como a última opção parece improvável, principalmente para Platão e Aristóteles, mais vale encarar as duas primeiras como uma reação natural perante um “inimigo teórico”, uma percepção particular de um fenômeno político ou a continuidade de uma crítica já em desenvolvimento na sociedade.

Considerações finais

GUTHRIE (2007, p. 9), parafraseando Albin Lesky, pontua:

O que quer que pensemos do movimento sofista, devemos todos estar de acordo que nenhum movimento intelectual pode-se comparar com ele na permanência de seus resultados, e que as questões propostas pelos sofistas nunca se permitiram repousar na história do pensamento ocidental até os nossos dias.

JAEGER (2013, pp. 338-339ss) também é enfático:

Talvez o aparecimento de grandes individualidades espirituais e o conflito da sua apurada consciência pessoal não tivessem dado origem a um movimento educacional tão poderoso como o da sofistica – que pela primeira vez estende a vastos círculos e dá publicidade total à exigência de uma areté baseada no saber – se a própria comunidade não tivesse sentido já a necessidade de ampliar os horizontes citadinos pela educação espiritual do indivíduo.

De Tales à Sócrates muitas das grandes questões filosóficas já haviam sido levantadas. Anaximandro falava sobre o ápeiron; Heráclito sobre o lógos; Zenão sobre a imobilidade; Aspásia dedicava-se à retórica etc. etc. Um Górgias, que propõem que o conhecimento não pode ser conhecido e, se conhecido, não pode ser comunicado, só pode se igualar a um Protágoras, que diz que o homem é a medida de todas as coisas. Os sofistas não só abriram um novo caminho a ser percorrido como também fecharam os que já não valiam mais à pena passar: cavaram um abismo entre as leis do Estado e as leis cósmicas em direção ao cosmopolitismo helenístico. Mudaram a força motriz do pensamento grego da natureza para o homem, até que Sócrates, acertadamente, buscou reconhecer a natureza do homem. Como conseguiria, entretanto, sem o advento da sofística? Os sofistas foram capazes de provar que há uma cisão irremediável entre physis e nómos, não só num prisma terminológico, mas principalmente concreto, real, político; que o nómos não tem outro fundamento além do arbitrário e da própria convenção humana. Se, por um lado, se abrem enormes perspectivas a respeito da liberdade e da ação política, por outro fecha-se a possibilidade de se construir a política enquanto ciência.

Platão quer restabelecer a união que os sofistas cindiram, entre phýsis e nómos. Ele quer uma lei humana, como a phýsis, baseada em algo permanente, absoluto, eterno, imutável e sobretudo ideal. Ele quer princípios, quer reconhecer princípios, mas quer, acima de tudo, destruir opiniões. Platão, dessa forma, dificilmente poderia concordar com uma filosofia protagórica, górgiana ou sofística. Não devemos, entretanto, sermos injustos com Platão na ânsia de fazermos justiça com os sofistas. Se a má fama desse movimento tem como preconizador a crítica platônica, a crítica platônica, por sua vez, tem como fonte irremediável a própria rejeição popular perante àquela classe de professores. Não que os sofistas tenham sido bussiness man’s da educação, ou outsiders da filosofia, como um Diógenes de Sinopse, mas sim professores, pedagogos e filósofos, homens dispostos a criticar e serem criticados, um Górgias que, citando novamente Giorgio Colli, pôde dizer: «me interroguem, eu responderei». Não há espaço para simpatizantes no turbilhão denominado filosofia e crítica histórica, e se ser justo aos sofistas serve de lição para uma nova roupagem de toda a história da filosofia, que isso não seja feito às custas de um antiplatonismo.

Figurando um dos movimentos intelectuais mais enriquecedores que já existiu, os sofistas foram responsáveis por enorme influência em todos os demais filósofos e pensadores, antes de Sócrates e até hoje. Os sofistas são, além de tudo, filósofos, que mesmo com pensamentos diferentes ou incomuns, mesmo com atos que levassem a crer que seus interesses eram unicamente materiais, foram muito importantes para o desenvolvimento da filosofia e abriram as portas não só para dessacralização da Grécia, para o pensamento crítico, metódico, científico, mas também para a chegada da filosofia medieval, moderna e contemporânea. Não formaram uma ponte, um caminho, uma passagem, mas antes deram-nos os métodos, as formas, a possibilidade de enfrentar e adentrar em qualquer encruzilhada, seja ela qual for.

Assim, portanto, Pe. Leonel França define o movimento sofistico:

«Embora sendo um sintoma de degenerescência e anarquia intelectual, o aparecimento dos sofistas foi de incontentável utilidade para o progresso da filosofia. Analisando e criticando os sistemas precedentes, mostraram-lhe a inanidade das generalizações ambiciosas e precipitadas. Abusando da dialética, revelara-lhe o valor e a importância de se lhe estudarem as regras e leis fundamentais. Impugnando a certeza e a veracidade das faculdades cognoscitivas, fizeram sentir a necessidade de aprofundar, ao lado das questões cosmológicas, a análise psicológica dos nossos instrumentos de conhecimento, estabelecendo-lhes o alcance e as condições de legitimidade. Desbravaram o terreno intelectual e rasgaram à filosofia novos horizontes, orientando-a para o estudo do espirito e de sua atividade, para a investigação dos métodos científicos do conhecimento e o exame dos processos dialéticos. Sem os sofistas não se compreende Sócrates. A reação dos primeiros preparou a reação dos segundos com todas as suas salutares consequências.» (Pe. Leonel França, S.J., Noções de História da Filosofia, apud GIORDANI, 1972, p. 352).

1 | The Sophists, em sua oitava edição pela Cambrige (1991), é a edição compilada da parte relacionada aos sofistas no terceiro volume da sua História. A edição usada nesse artigo se trata da tradução para o português em W. K. C. Guthrie, Os Sofistas (Editora Paulus, 2007, 2 edª).

2 | A primeira aparição da palavra remonta ao poeta Píndaro, onde sophiste é traduzido por “poeta”. O primeiro teor negativo da palavra parece ocorrer em Ésquilo, na peça Prometeu, tendo eco em Sófocles (GUTHRIE, 2007, pp. 33-36ss). Para uma abordagem literária dos sofistas, cf. Augusto Mancini, História da literatura grega (vol. II), Lisboa, 1973 (p. 18s).

3 | Para o conhecimento a respeito do corpo fragmentário sofístico, cf. R. K. Sprage (ed.), The Older Sophists: A Complete Translation (Columbia, S, C., 1972).

4 | Cf. Henri-Irénée Marrou, História da Educação na Antiguidade (Editora Kírion, 2017).

5 | A respeito das escolas filosóficas na Antiguidade, cf. o extenso estudo de André Laks, A emergência de uma disciplina: o caso da filosofia pré-socrática em História: Questões & Debates, Curitiba, n. 53, pp. 13-37ss, 2010.

6 | Para uma opinião contrária a respeito do relativismo, subjetivismo e ceticismo, ver Paul Woodruff no capítulo Retórica e relativismo: Protágoras e Górgias, em LONG (2018).

7 | A exposição meticulosa desse processo é descrita por Antonio Capizzi no belíssimo artigo “A confluência dos sofistas a Atenas” em MARQUES (2017, p. 46).

Esta presente versão do artigo, levando em consideração os limites de caracteres do blog, teve de ser reduzida, não contendo alguns tópicos e tendo, também, a maior parte das notas de rodapé eliminadas, além das referências bibliográficas. O artigo integral está disponível para leitura clicando aqui:

(https://www.academia.edu/54679462/Introdu%C3%A7%C3%A3o_ao_movimento_sofista).

Sobre o(a) Autor(a)

Gabriel Cossil

Gabriel Cossil (20 anos) é escritor, produtor e estudante da Antiguidade grega. Se interessou pela mitologia grega em 2019, após ler o livro "O Calcanhar de Aquiles", de Duda Teixeira, e se apaixonar pelo tema. Desde então vem estudando, cada vez mais, os assuntos relacionados principalmente à filosofia, história e mitologia grega. Autodidata, trabalha para a futura formação de uma geração de estudantes interessados não só pela Antiguidade grega, mas pela História da Grécia medieval, moderna e contemporânea, demonstrando que os gregos não morrem com a dominação romana. Instagram: https://www.instagram.com/gabriel.cossil/ Site pessoal: https://gabrielcossil.medium.com/
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