João Guimaraes Rosa foi um escritor proeminente que exerceu muitas funções na vida pública como a de médico, diplomata, chefe de gabinete, etc. Ganhador de vários prêmios de literatura ao longo da sua carreira (LIMA, 1996). Considerado como um dos escritores brasileiros mais importantes do século XX e de todos os tempos (SCORSOLINI-COMIN e SANTOS, 2014).
Em 1962 é publicado o livro: Primeiras Estórias, no mesmo ano que ele assume, no Itamarati, a Chefia do Serviço de Demarcação de Fronteiras (LIMA, 1996). Sendo uma das obras mais conhecidas, ao lado do livro Grande Sertão: Veredas (SCORSOLINI-COMIN e SANTOS, 2014). Nesse livro Rosa apresenta acontecimentos do sertão, contos de cunho fantástico e próximos de matizes das narrativas populares (BOLLE, 1973). São vinte e um contos que foram organizados:
Embora “diversas” temática e estilisticamente, as vinte e uma narrativas de Primeiras Estórias não são uma sequência aleatória, mas um ciclo de “exercícios” no duplo sentido da palavra: exercícios espirituais ou meditações e exercícios de virtuosismo que lembram certas composições musicais, cuja finalidade é treinar as “habilidade da mãos” (ROSENFIELD, 2006, p. 152)
Nas obras de Rosa percebemos alguns elementos predominantes como observa Scorsolini-Comin e Santos (2014, p.20):
Entre os principais elementos da obra de Rosa podemos mencionar o regionalismo, com frequentes alusões ao seu universo e sertanejo, as marcas linguísticas de suas produções, com marcante presença de neologismos e recursos estilísticos que contribuem para a caracterização de seus personagens e de seu rico universo de ressonâncias míticas.
As estórias contêm também um caráter filosófico e pedagógico. Segundo Faria (2004) o propósito de todos os contos é apresentar o sentido da existência. A autora argumenta que na verdade as estórias são várias “versões” de uma estória que “pode prodigalizar infinitas estórias, pois cada uma é completa e contém a semente toda”.
São contos que são simples e ao mesmo tempo complexos, filosóficos e cotidianos, transcendentes e imanentes (FARIA, 2004, p.33). Portanto, elas carregam um alto significado e reflexão filosófica, afinal, a presença do inesperado é constante, assim como a própria existência.
No livro encontramos principalmente dois grupos: loucos e crianças. A presença desses talvez se explique pelo fato de Guimarães usar constantemente a palavra “margem”, e esses dois grupos são, em geral, deixados à margem da sociedade. Personagens que “não ocupam lugar de destaque nas narrativas” (DE MENDONÇA, 2019, p. 539). O autor dá centralidade para esses dois grupos outrora esquecidos ou ignorados. Discutindo assuntos complexos a partir do olhar e da vivência deles.
Mas a palavra margem também ganha um significado metafísico, principalmente quando pensamos na estória popularmente mais conhecida do livro: ‘’a terceira margem do rio”. O próprio autor em uma entrevista afirmou que usou do transcendente em seus escritos e que por trás dos textos concretos se “escondia uma porção de coisas”. O autor “fazia questão de frisar valor metafísico-religioso” em suas obras (UTÉZA, 1998, p. 127).
Somado ao transcendente, Guimarães Rosa tece em suas obras o imaginário, principalmente do ponto de vista infantil. Morais e Lopes (2018, p. 179) falam acerca da construção dos personagens infantis:
Os personagens infantis na obra rosiana se constroem a partir dessas premissas, uma vez que eles próprios produzem sentidos e entendimentos da realidade, acompanhados de uma linguagem muito particular, que, muitas vezes, não é entendida por aqueles que os cercam.
Esse imaginário está também ligado ao que constitui o transcendente nos contos rosianos, afinal, a realidade é apresentada ao leitor como algo além do que se vê e ao mesmo tempo exatamente idêntica ao que se vê.
Portanto, o conto de análise é o quarto do livro “Primeiras estórias”, intitulado “A menina de lá”. O conto segundo Junior; Bellini (2015, p.4) “traduz-se como exemplo de obra literária fantástica, trazendo especificamente a figura do fantásticomaravilhoso no sertão brasileiro”. Todorov (2010, p.30 e 31) explica que “o conceito de fantástico se define pois com relação aos de real e imaginário […]”. E ainda que o fantástico “é a hesitação experimentada por um ser que só conhece as leis naturais, face a um acontecimento aparentemente sobrenatural”.
O sobrenatural e o natural são narrados, a coincidência e o milagre, o real e o imaginário. Faria (2004, p. 40) comenta que esse conto “é a transcendência que se anuncia. Com ela, a morte se desvela como o berço da vida […]’’. A partir desses conceitos iremos analisar o conto e seus elementos.
A menina de lá: a transcendência anunciada
Guimaraes utiliza-se de personagens infantis em vários contos do livro Primeiras Estórias (MORAIS; LOPES, 2018). E, no conto ‘A menina de lá’ a história narrada é de uma criança de mais ou menos quatro anos de idade. A menina é apresentada pelo narrador sendo uma criança como qualquer outra. Porém, o título já nos intriga quanto ao significado do advérbio “lá”.
O narrador descortina para o leitor que aquela menina pode pertencer a qualquer lugar, a um lugar mágico também. De acordo com os autores, “(…) poderíamos interpretar esse “lá” como espaço do mágico, algo que a própria narrativa pode corroborar com isso. Assim, a menina seria de um outro lugar, fora da realidade comum (MORAIS; LOPEZ, 2018, p. 182). Ambos autores seguem com suas análises apresentando que o título tem tudo a ver com características descritas de Maria, a Ninhinha, e de lugares que ela vivia:
Sua casa ficava trás da Serra do Mim, quase no meio de um brejo de água limpa, lugar chamado o Temor- de -Deus. O Pai, pequeno sitiante, lidava com vacas e arroz; a Mãe, urucuiana, nunca tirava o terço da mão, mesmo quando matando galinhas ou passando descompostura em alguém. E ela, menininha, por nome Maria, Nhinhinha dita, nascera já muito para miúda, cabeçudota e com olhos enormes (ROSA, 2016, p. 27).
Morais e Lopes (2018) apresentam que o advérbio lá pode tanto ser usado para indicar que a menina não pertence a realidade comum ou apontar para um local pontual, trazendo um distanciamento do leitor. Ao olharmos para o desfecho do conto, o lá parece se referir ao pós-morte. Porém, o próprio conto talvez permita uma leitura dual, afinal, realidade e transcendência são bem tecidas aqui e na maioria dos contos do livro.
O narrador começa descrevendo o local que a menina vive: “Sua casa ficava para trás da serra do Mim, quase no meio de um brejo de água limpa, lugar chamado o Temor-de-Deus”. (ROSA,2014, p. 40). Já de início vemos uma referência ao sobrenatural. Morais e Lopes (2018) comentam que esse “Temor-de-Deus” expressa uma relação com Deus baseada no medo. Talvez seja precipitado afirmar que seja esse o entendimento, afinal, essa palavra está muito presente no contexto religioso e muitas vezes não exatamente ligada ao medo. Mas não descartamos a possibilidade, até porque como argumentam Morais e Lopes (2018) a mãe não tirava o terço da mão.
As descrições da menina também parecem apontar para uma ideia de sobrenatural. Afinal, os “olhos enormes” podem indicar uma visão transcendente que outros não a teriam. E o neologismo “cabeçudota” poderia indicar a capacidade do imaginário infantil e reflexão (JUNIOR e BELLINI, 2015).
O sertão: um lugar de fé
Guimarães Rosa foi um autor que elevava a rotina sertaneja, em seus contos, ele mostrava a vida de pessoas humildes, qualquer pessoa que lia seus contos se tornava parte da história. Como ele mesmo disse: _ “O romance trata de lutas, de jagunços. E naquela região do interior do Brasil, com um sistema quase medieval de grandes fazendeiros e com pouca justiça, pouca polícia … (ROSA, 1962).
Rosa foi um homem que engrandeceu seu lugar de nascimento, e transcreveu tudo o que viu e viveu em muitos de seus livros. Talvez, pelo fato de que o próprio autor nasceu em um lugar aconchegante, numa cidade onde o sertão começava, Cordisburgo- MG.
O povo que vive no sertão tem uma característica muito forte, a religiosidade. Segundo Morais e Lopes (2018, p. 186):
Sabendo que a mãe de Nhinhinha não tirava do terço da mão, podese imaginar que a menina seja exposta à cultura cristã. É tanto que, quando os pais e a tia tiveram certeza de que Nhinhinha operava milagres, eles decidiram não contar para ninguém com medo de que padres ou a Igreja levassem a menina.
A cultura religiosa judaico-cristã se faz muito presente no sertão. Talvez o apego pela fé se dá justamente pelo contexto difícil de necessidade e privação que muitos enfrentam. […] “Os estudos sobre a dimensão religiosa do mundo do sertão partem do dado da religiosidade penitencial e sofredora, mística ou messiânica, como se esta fosse inscrita na alma e na carne do sertanejo” (POMPA, 2014, p.145).
Ao ler os escritos de Guimarães Rosa “encontraremos aspectos da religiosidade judaico-cristã, que transbordam de suas páginas” (MEDEIROS, 2017, p. 25). Para Vilarino (2007, p. 138) existe intertextualidade dos escritos de Guimarães com as histórias contadas pelos sertanejos de eventos maravilhosos e também com as “narrativas medievais das vidas dos santos, que davam conta de miraculosidades e estigmas […].
Sendo mais comum no contexto do sertão a presença religiosa do catolicismo. O que não é diferente no conto a partir das seguintes alusões:
[…] a mãe, urucuiana, nunca tirava o terço da mão, mesmo quando
matando galinhas ou passando descompostura em
alguém.
Decidiram de guardar segredo.
Não viessem ali os curiosos, gente maldosa e interesseira, com
escândalos. Ou os padres, o bispo, quisessem tomar conta da menina,
levá-la para sério convento.
[…] E mais para repassar o coração de se ver quando a mãe desfiava
o terço, mas em vez das ave-marias podendo só gemer aquilo de —
“Menina grande… Menina grande…”
— com toda ferocidade (ROSA, 2016, p. 40, 42 e 43)
Percebemos um elemento simbólico da fé cristã que está na mão da mãe da menina. E após a morte da menina há uma clara referência a reza de ave-marias, que são praticadas no velório dos familiares. Além de uma clara alusão ao fato do temor dos pais de que ela fosse descoberta e seus milagres despertasse o interesse de líderes religiosos. Dessa maneira, poderiam ficar privados da presença da menina que seria levada para algum convento.
Ao que até lembra o processo de canonização de um santo. Segundo Andrade existem critérios para o reconhecimento que aquele indivíduo pode ser considerado santo:
[…] o santo é alguém cuja santidade é reconhecida como excepcional por outros cristãos e para a Igreja católica proclamar alguém como santo, a vida da pessoa deve ser investigada pelas devidas autoridades eclesiásticas; seus escritos e sua conduta são escrutinados; são chamadas testemunhas para depor sobre sua virtude heróica; os milagres operados postumamente por sua intercessão devem ser provados. Só então, a partir daí, o papa declara por sua santidade ou não (ANDRADE, 2008, p. 242).
Dessa forma, justamente após a morte da menina e todo o drama do pedido dela em relação ao caixão, ela será dita como santa:
A mãe queria, ela começou a discutir com o pai. Mas, no mais choro, se serenou — o sorriso tão bom, tão grande — suspensão num pensamento: que não era preciso encomendar, nem explicar, pois havia de sair bem assim, do jeito, cor-de-rosa com verdes funebrilhos, porque era, tinha de ser! — pelo milagre, o de sua filhinha em glória, Santa Nhinhinha. (ROSA, 2016, p.43)
Nesse caso, é a própria família que a denomina de “Santa Nhinhinha”, visto que eles guardaram para si os feitos milagrosos que a menina fez. No contexto eclesiástico é necessária a comprovação e investigação da Igreja para uma possível canonização. Como afirma Andrade (2008, p. 242), “A Igreja católica arroga para si a capacidade divinamente orientada, de discernir, de tempos em tempos, se esta ou aquela pessoa está entre os eleitos”.
Dentro da religiosidade católica existe um entendimento de que crianças podem ser consideradas santas, porém há critérios para isso:
a única forma de uma criança tornar-se santa ou beata é a morte via sacrifício, suportar uma dor extremamente intensa, na qual tenha demonstrado coragem e determinação, o que pode acontecer em três circunstancias: uma doença grave, uma morte violenta, sob tortura e, muito raramente, quando é vítima de uma experiência divina. (ANDRADE, 2008, p. 248)
Na Igreja Católica existem alguns santos crianças. O primeiro foi declarado pelo Papa Pio XII, em 24 de junho de 1950. O nome da santa é Maria Goretti, ela foi brutalmente assassinada, com golpes de punhal, por um jovem chamado Alexandre Serenelli. E ela, segundo o relato, morrera pedindo perdão para o assassino. Outras crianças também foram canonizadas ao longo dos anos. “De 1987 a 2002, 10 crianças foram beatificadas” (ANDRADE, 2008, p. 250).
A criança e sua inocência despertam a ideia de um ser puro e inocente. Por isso, essa aproximação com o sagrado e o religioso. O próprio Jesus fez referência ao infanto e o reino dele. Somado a essa ideia, Jung comenta:
Paradoxo existente em todos os mitos da criança: o fato de ela estar entregue e indefesa frente a inimigos poderosíssimos, constantemente ameaçada pelo perigo da extinção, mas possuindo forças que ultrapassam muito a medida humana. Esta afirmação se relaciona intimamente com o fato psicológico de a criança ser insignificante, por um lado, isto é, desconhecida, apenas uma criança, mas por outro, divina. O mito enfatiza que a criança é dotada de um poder superior e que se impõe inesperadamente, apesar de todos os perigos (JUNG, 2006 p.169-170)
Porém, na narrativa não se pretende essa beatificação. Vilarino (2007) argumenta que o mito em questão romperá com o padrão. O conto é fruto da religiosidade popular.
Tem elementos do contexto religioso judaico-cristão, mas rompe com os padrões por se tratar de uma narrativa ficcional.
Milagres ou coincidências?
O narrador vai apontar que ele tinha um relacionamento com a criança. “E Nhinhinha gostava de mim” (ROSA, 2016, p.41). E logo após ele vai narrar a linguagem peculiar dela (iremos abordar logo mais). O narrador vai agora se distanciar e dizer: “Nunca mais vi Nhinhinha” (ROSA, 2016, p.41). “O narrador se retira como personagem da história e continua a contá-la com um olhar de fora dando, desse modo, espaço à narração, em terceira pessoa” (JUNIOR e BELLINI, 2015, p. 12) Há uma passagem do narrador em primeira pessoa para terceira nesse ponto. O narrador irá apresentar algo que ouviu e parece colocar esses acontecimentos como hipotéticos:
Sei, porém, que foi por aí que ela começou a fazer milagres. Nem mãe nem pai acharam logo a maravilha, repentina. Mas Tiantônia. Parece que foi de manhã. Nhinhinha, só, sentada olhando o nada diante das pessoas: — “Eu queria o sapo vir aqui”. Se bem a ouviram, pensaram fosse um patranhar, o de seus disparates, de sempre. Tiantônia, por vezo, acenou-lhe com o dedo. Mas, aí, reto, aos pulinhos, o ser entrava na sala, para aos pés de Nhínhinha — e não o sapo de papo, mas bela rã brejeira, vinda do verduroso, a rã verdíssima. Visita dessas jamais acontecera. E ela riu: — “Está trabalhando um feitiço…” Os outros se pasmaram; silenciaram demais. (ROSA, 2016, p.41).
Esse foi o primeiro “milagre” da menina. Algo que aparentemente é apenas uma coincidência. A reação dos pais e da Tiantônia que estava presente reverbera a atitude do leitor diante do acontecimento (JUNIOR e BELLINI, 2015). Mas logo em seguida ela tem outro desejo:
Dias depois, com o mesmo sossego: — “Eu queria uma pamonhinha de goíabada…” —sussurrou; e, nem bem meia hora, chegou uma dona, de longe, que trazia os pãezinhos da goiabada enrolada na palha (ROSA, 2016, p.41).
Esse foi o seu segundo “milagre”, novamente um pedido se realizando, o que pode ser visto novamente como mais uma coincidência. Segundo Junior e Bellini (2015, p. 5), “No entanto, como o primeiro caso e os mais que se seguirão, o ocorrido não representa aos demais personagens e ao leitor fatos sobrenaturais, insólitos, mas são entendidos como coincidências do acaso”. O que para Morais e Lopes (2018,p.186) , “Nesse movimento do texto, percebemos uma dinâmica: ao apontar para o milagre como algo de consenso, o conto registra, na realidade, o evento como cheio de potência de ficção”. Os milagres até esse momento são questionáveis pelo narrador, personagens e consequentemente pelo leitor. Até o momento parece-nos algo muito ligado ao mundo infantil. Desejos sendo feitos e realizados. O narrador vai dar a seguinte nota:
Aquilo, quem entendia? Nem os outros prodígios, que vieram se seguindo. O que ela queria, que falava, súbito acontecia. Só que queria muito pouco, e sempre as coisas levianas e descuidosas, o que não põe nem quita. (ROSA, 2016, p.41).
O narrador aponta para a ideia que a menina quer coisas do seu universo, coisas pequenas e não grandiosas. Essa nota vai ser uma espécie de anuncio de enredo do que virá a seguir. Logo a seguir o narrador diz que sua mãe adoeceu e não havia remédio para curá-la. Porém, não conseguiram que a menina falasse a cura.
Sorria apenas, segredando seu — “Deixa… Deixa.. — não a podiam despersuadir. Mas veio, vagarosa, abraçou a mãe e a beijou, quentinha. A mãe, que a olhava com estarrecida fé, sarou-se então, num minuto.
O narrador aponta-nos algo muito interessante: a fé da mãe que é descrita como “estarrecida”. Palavra que significa: assustar, atemorizar, apavorar-se (FERREIRA, 2009, p. 376). Uma palavra que normalmente não é usada junto com a palavra fé. Mas o texto anteriormente apontou para um apego religioso da mãe e também de que o lugar onde vivem se chama “Temor-de-Deus”.
“A partir daí, a família de Nhinhinha passou a compreender que a garotinha não era uma criança comum, porém um ser dotado de um dom sobrenatural que implicava realizar as suas vontades” (JUNIOR e BELLINI, 2015, p. 5). O leitor dessa forma também começa a ficar convencido de que algo está acontecendo, este “estarrecimento” da mãe começa a ser uma característica do leitor também.
Os próprios personagens são descritos a partir do sentimento de medo e ainda de uma certa descrença:
Ninguém, nem os parentes de mais perto, devia saber. Também, o pai, Tiantônia e a mãe, nem queriam versar conversas, sentiam um medo extraordinário da coisa. Achavam ilusão. (ROSA, 2016, p.41).
Logo em seguida o narrador vai dizer que veio uma seca na região. O pai pediu para a filha pedir chuva, mas a menina recusou. Tentaram usar a lógica para convencê-la de que acabariam os mantimentos, mas ela não aceitou. O que comenta Morais e Lopes (2018, p.187): “Certamente, o pensamento utilitário de seu pai se confronta com o pensamento infantil de Nhinhinha, que não vê razão de desejar o que seu pai quer”. Mas ela faz um desejo simples: queria ver o arco-íris, por isso, chove. Vilarino (2007) comenta que essa narração caprichosa e soberba de deusa é para encantamento.
Novamente eles presenciam um feito extraordinário ou apenas mera coincidência? O conto apesar de narrar uma estória com aspecto transcendente, sobrenatural e fantástico se apresenta como uma espécie de “[…] ilusão da realidade, ou seja, ela atuaria enquanto narrativa que fala do que realmente ocorreu, do que se manifestou plenamente (VILARINO, 2007, 148).
A morte: uma passagem
A narrativa vai descrever a alegria da menina após a chuva. Vai fazer uma referencia aos pássaros, algo que aparece em muitos contos do livro como em “As margens da alegria”, “Os cimos”, etc. Aqui vemos novamente a alegria sendo descrita:
Nhinhinha se alegrou, fora do sério, à tarde do dia, com a refrescação. Fez o que nunca se lhe vira, pular e correr por casa e quintal. — “Adivinhou passarinho verde?” — pai e mãe se perguntavam. Esses, os passarinhos, cantavam, deputados de um reino. Mas houve que, a certo momento, Tiantônia repreendesse a menina, muito brava, muito forte, sem usos, até a mãe e o pai não entenderam aquilo, não gostaram. E Nhinhinha, branda, tornou a ficar sentadinha, inalterada que nem se sonhasse, ainda mais imóvel, com seu passarinho-verde pensamento. Pai e mãe cochichavam, contentes: que, quando ela crescesse e tomasse juízo, ia poder ajudar muito a eles, conforme à Providência decerto prazia que fosse (ROSA, 2016, p.42 e 43)
Aqui se apresenta uma bronca feita pela Tiantônia que desperta o desgosto dos pais, mas a menina é descrita como imóvel, como se estivesse em transe. Os pais nutrem um desejo de que a menina pudesse os ajudar quando tivesse juízo, talvez pensando em todo esse contexto sertanejo de dificuldade, seca e fome. Mas de maneira abrupta o narrador vai apresentar a morte da menina:
E, vai, Nhinhinha adoeceu e morreu. Diz-se que da má água desses ares. Todos os vivos atos se passam longe demais. Desabado aquele feito, houve muitas diversas dores, de todos, dos de casa: um de-repente enorme. A mãe, o pai, e Tiantônia davam conta de que era a mesma coisa que se cada um deles tivesse morrido por metade. E mais para repassar o coração de se ver quando a mãe desfiava o terço, mas em vez das avemarias podendo só gemer aquilo de — “Menina grande… Menina grande…”— com toda ferocidade. E o pai alisava com as mãos o tamboretinho em que Nhinhínha se sentava tanto, e em que ele mesmo se sentar não podia, que com o peso de seu corpo de homem o tamboretinho se quebrava fosse (ROSA, 2016, p. 43).
Os pais de Nhinhinha se apresentam em choque, assim como o próprio leitor. A mãe até parece estar em um estado de loucura, que geme a expressão “Menina grande”. O pai também apresenta um estado de profunda tristeza: imaginando a filha através do tamborete que ela normalmente sentava. A morte prematura da personagem principal do conto causa espanto.
Esse abalo pela morte faz lembrar o que acontece no conto “A terceira Margem do Rio’’ onde a experiência do pai acaba sendo a do filho. O conto que também faz parte do livro Primeiras Estórias parece aludir a morte de maneira alegórica como sendo uma passagem para um outra margem, a travessia do rio (DA SILVA e ALVES, 2019). Aqui a travessia da morte é descrita como a ida para “lá” já anunciado no próprio nome título do conto. O surpreendente do conto é que o narrador já havia anunciado o desfecho:
E tinha respostas mais longas: — “E eu? Tou fazendo saudade”. Outra hora, falava-se de parentes já mortos, ela riu: — “Vou visitar eles…” Ralhei, dei conselhos, disse que ela estava com a lua. Olhou-me, zombas, seus olhos muito perspectivos: — “Ele te xurugou? (ROSA, 2016, p. 43).
O narrador aqui conta que ralhou com a menina ao ela dizer que iria visitar os parentes que já haviam morrido. Braga (2009, p.21) comenta que esse lugar para onde a menina quer ir é “onde encerra sua peregrinação de santa ou criança divina”. Por fim, o narrador nos revela algo chocante:
Aí, Tiantônia tomou coragem, carecia de contar: que, naquele dia, do arco-íris da chuva, do passarinho, Nhinhinha tinha falado despropositado desatino, por isso com ela ralhara. O que fora: que queria um caixãozinho corde-rosa, com enfeites verdes brilhantes… A agouraria! Agora, era para se encomendar o caixãozinho assim, sua vontade? (ROSA, 2016, p. 43).
E “tal desatino de fala havia abalado a tia, essas palavras eram estranhas vindas de uma criança que estava começando a vida” (SONCINI, 2021, p. 248). A menina tinha também predito sua própria morte? A principio o pai relutou em atender esse pedido da filha, mas ao fim foi convencido. Quem era essa Maria, a Nhinhinha? “Deusa, Santa, Doida? Não é possível classificá-la. Depende da crença de quem a enxerga. Se por um lado efetivamente o texto afirma que o que ela falava acontecia, o narrador não presenciou nada, apenas ouviu falar do que aconteceu após sua partida” (BRAGA, 2009, p. 18).
O imaginário infantil e a percepção da realidade
O conto vai apresentar a realidade da perspectiva de uma criança em contraste com a percepção do mundo adulto. Uma compreensão que muitas vezes é menosprezada e vista como inferior comparada a compreensão do adulto:
Em Primeiras estórias, ROSA lança mão de um suposto não saber da criança para introduzir questionamentos extremamente filosóficos e poéticos: as crianças refletem sobre as relações humanas entre si e com os demais seres da natureza, apontando para um saber que os adultos foram considerando de menor importância ao longo de seu crescimento. (DE MENDONÇA, 2019, p. 540)
No conto essa compreensão do imaginário infantil é desconhecida pelos adultos que muitas vezes buscam até mesmo a disciplina.
Ninguém tinha real poder sobre ela, não se sabiam suas preferências. Como puni-la? E, bater-lhe, não ousassem; nem havia motivo. (ROSA, 2016, p. 41).
A criança por estar aprendendo a falar não tem todo o domínio da língua e além desse fato, o imaginário dela é diferente. Nhinhinha utiliza-se de um vocabulário próprio, usando expressões como:
— “Ninguém entende muita coisa que ela fala…” dizia o pai, com certo espanto. Menos pela estranhez das palairas, pois só em raro ela perguntava, por exemplo: — “Ele xurugou?” — e, vai ver, quem e o quê, jamais se saberia.
De vê-la tão perpétua e imperturbada, a gente se assustava de repente. — “Nhinhinha, que é que você está fazendo?” — perguntavase. E ela respondia, alongada, sorrida, moduladamente: — “Eu… tu… fa-azendo”. Fazia vácuos. Seria mesmo seu tanto tolinha?
Chamava-as de “estrelinhas pia-pia”. Repetia: — “Tudo nascendo!”— essa sua exclamação dileta, em muitas ocasiões, com o deferir de um sorriso. E o ar. Dizia que o ar estava com cheiro de lembrança — “A gente não vê quando o vento se acaba…” Estava no quintal, vestidinha de amarelo. O que falava, às vezes era comum, a gente é que ouvia exagerado: — “Alturas de urubuir…Não, dissera só: — ….. altura de urubu não ir”. O dedinho chegava quase no céu. Lembrou-se de:— “Jabuticaba de vem-me-ver…
Esse vocabulário próprio, no entanto, nos lembra os próprios escritos de Guimarães Rosa que são carregados de neologismos. Mas os pais dela não conseguem entender e é preciso uma normatização. E a narrativa questiona também se ela não é “tolinha”? Corroborando com essa ideia Morais e Lopes (2018, p.) comentam que “corpos e linguagem aparecem submetidos a um controle externo de uma normatização dos pais da menina ou de todos que tentam impor à Nhinhinha uma maneira de ser, se comportar e falar.
No conto “A menina de lá” esse imaginário inventivo da personagem é compatível com o imaginário do artista, do escritor. Morais e Lopes (2018, p. 180) afirmam que “a menina metaforiza a situação do próprio fazer literário”. Portanto, a ideia que parece ser transmitida é que existe uma inferiorização ao saber literário, ao olhar e imaginário artístico assim como há com relação ao imaginário infantil. “Essa percepção geralmente institui uma hierarquia em que a visão infantil ou a visão do artista sempre contam menos, vistas como ou ingênua ou “desnecessária”, “excessiva” e “inútil” numa sociedade reificada” (MORAIS e LOPES, 2018, p. 180).
De Mendonça (2019, p. 540) diz: “Nhinhinha queria sempre o simples, o que ela enxergava beleza: como o sapo, a pamonhinha de goiabada e o arco-íris, ela se diverte com as palavras como quem se diverte com brinquedos. O que para a autora se assemelha ao olhar do artista. Mia Couto que se encantou com Guimarães Rosa disse:
“A criança tem a vantagem de estrear o mundo, iniciando outro matrimônio entre as coisas e os nomes. Outros a elas se semelham, à vida sempre recém chegando. São os homens em estado de poesia, essa infância autorizada pelo brilho da palavra.” (COUTO, 1991, p. 21)
Conclusão
O conto “A menina de lá” traz um universo de interpretações e possibilidades. O presente trabalho propôs levantar algumas hipóteses a partir das inúmeras formas de abordagens já feitas. Tendo em vista uma abordagem do fenômeno transcendente que o conto sugere e ao mesmo tempo imaginário, o que se resumiria naquilo que é a literatura fantástica que é caracterizada pela hesitação entre uma explicação natural e uma sobrenatural (TODOROV, 2019). Portanto, no conto o leitor entra nesse dilema: os milagres são puras coincidências ou não? O enredo é construído de maneira paulatina e buscando convencer o leitor que choca ao se deparar com a morte da menina.
Brevemente abordamos também que o imaginário infantil no conto é comparável ao imaginário artístico-literário. (MORAIS e LOPES, 2018). Dessa forma, o conto perpassa questões transcendentes, existenciais, estéticas, do imaginário religioso e infantil.
Referências
BRAGA, Estela Kenne. Sabedoria e infância em Primeiras Estórias. Porto Alegre. 2009. BOLLE, Willi. Fórmula e fábula. São Paulo: Perspectiva, 1973.
DA SILVA, Thaína Martins; ALVES, Lídia Maria Nazaré. A representação da loucura, morte e luto no conto “a terceira margem do rio” de João Guimarães Rosa. Anais do Seminário Científico do UNIFACIG, n. 5, 2019.
DE ANDRADE, Solange Ramos. A religiosidade católica e a santidade do mártir. Projeto História: Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados de História, v. 37, n. 2, 2008.
DE MENDONÇA, Mayara Simonassi Farias. A criança e seu “desajeitado tatear”em Primerias Estórias, de João Guimarães Rosa. Anais do IX SAPPILEstudos de Literatura, v. 1, n. 1, 2019.
FARIA, Maria Lucia Guimarães. A originalidade das Primeiras Estórias e a estrutura arquitetônica do livro. Revista Garrafa, vol. 2, n. 3, maio-agosto, 2004.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Aurélio Século XXI: o dicionário da língua portuguesa.
JÚNIOR, Arnaldo Nogari; BELLINI, Nerynei Meira Carneiro. “A menina de lá”: O fantástico-maravilhoso na obra de João Guimarães Rosa. revista Linguasagem, v. 22, n. 1, 2015.
JUNG, C. G. A psicologia do arquétipo da criança. In: Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Petrópolis, Vozes, 2006 MEDEIROS, Alexandre. A Vereda Divina: uma viagem através da linguagem religiosa do Sertão rosiano. Disponível em <http://www.hottopos.com/convenit25/25-36Alexandre.pdf>. Acesso em : 28 nov. 2021
MORAIS, M. P. A.; LOPEZ, F. J. A. O comum e o extraordinário em “A menina de lá”, de Guimarães Rosa. Revista Humanidade e Inovação, v.5, n. 7, p. 178- 188, 2018.
POMPA, Cristina. Leituras do «fanatismo religioso» no sertão brasileiro. Novos Estudos Cebrap, v. 69, p. 71-88, 2004. ROSA, Guimarães. Primeiras Estórias. São Paulo: Nova Fronteira, 2016
ROSENFIELD, Kathrin Holzemayr. Desenveredando Rosa- A obra de J.G. Rosa e outros ensaios rosianos. Rio de Janeiro: Topbooks, 2006. SARMENTO, M. J. Imaginário e cultura da infância. 2002. Disponível em: < http://titosena.faed.udesc.br/Arquivos/Artigos_infancia/Cultura%20na%20Infancia.pdf >. Acesso em: 04 nov. 2021
VAN DIJCK LIMA, Sônia Maria. João Guimarães Rosa: cronologia de vida e obra. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n. 41, p. 249-254, 1996.
VILARINO, Matosalém. A Menina De Lá, de Guimarães Rosa: as margens do dito e do mito. Gláuks, v. 7, n. 2, 2007, 137-156.
TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. Tradução de Maria Clara Correa Castello. São Paulo: Perspectiva, 2017. UTÉZA, Francis. JGR: metafísica do Grande sertão. São Paulo: EDUSP, 1994. PDF. Publicado. 14-10-1998. Como Citar. Utéza, F. (1998)
This Post Has 0 Comments