O presente texto tem como objetivo apresentar o ambiente histórico, cultural e social sobre a vida e obra de Paulo de Tarso, o apóstolo Paulo, São Paulo, ou ainda o “Apóstolo dos Gentios”. Nosso propósito não é apresentar um trabalho de cunho teológico, apesar de dialogarmos com diversos autores desse campo. Trataremos do tema a partir de um enfoque de teoria crítica, em especial através de análise de fontes primárias ressaltando diversos elementos sociais, políticos e culturais dentro da Bacia do Mediterrâneo.
Nas primeiras décadas do Império Romano, surgiu uma nova seita judaica que se propagou rapidamente, ainda que não de uma forma multitudinária pelas cidades do Oriente. Em suas viagens pela Síria, Ásia Menor e Grécia, Paulo pregou um homem aclamado pelos seus seguidores como o Messias judaico, pois havia ressuscitado, o que indicava que para ele o Reino de Deus estava próximo. “As sementes em lenta maturação de uma grande revolução religiosa no Mediterrâneo tinham sido plantadas” (Abulafia, 2014).
O apóstolo Paulo é a figura mais conhecida na história do cristianismo primitivo. As informações que possuímos sobre sua vida e seu papel na igreja primitiva procedem, no Novo Testamento, dos Atos dos Apóstolos e de suas cartas (Simon; Benoit, 1987). A teoria crítica aponta que, das treze cartas atribuídas a ele, sete são consideradas autênticas. Estas são: Romanos, 1ª Coríntios, 2ª Coríntios, Gálatas, Efésios, Filipenses, Colossenses e 1ª Tessalonicenses. Notamos que Paulo de Tarso, ou Saulo, como é descrito no livro de Atos, após a sua “conversão” no caminho de Damasco, talvez tenha sofrido uma mudança de comportamento ou μετάνοια – conceito utilizado para a compreensão de mudanças repentinas. Na narrativa escrita pela pena do “apóstolo dos gentios” (Gal.,1, 15-17), Deus revela seu filho a fim de que ele leve sua mensagem aos não judeus, ampliando assim o seu público-alvo. Tal informação é confirmada em outra epístola dedicada à comunidade de Corinto (1ª Cor. 9, 1). Trata-se, na verdade, de Paulo ser um judeu de dois mundos. A despeito de seu carisma e poder retórico, Paulo também simbolizou a agilidade de seu ambiente cultural: a diáspora judaica.
Em vista dessas informações, recolhidas dos Atos dos Apóstolos e das cartas autênticas, pode-se observar que Paulo era um judeu zeloso, oriundo da diáspora e de fala grega. Contudo, podemos deduzir que ele fosse um pregador apocalíptico que acreditava no retorno de Cristo para o seu tempo presente. Como fontes, temos principalmente as referências conhecidas de Paulo ao seu passado, antes e depois da mudança em sua vida e, além disso, numerosas indicações menores que se referem ao significado do seu chamado apostólico (Hengel; Schwemer, 1997).
Geograficamente, o Império Romano, entre os principados de Cláudio e de Nero (41 d.C. – 68 d.C.), atingiu sua maior extensão até aquele momento. Os romanos conheciam bem as terras distantes – a Bretanha, a Germânia, além do Reno, a Mesopotâmia fértil, controlada pelo Império Parta, até a Índia, cujos perfumes, especiarias, marfim e gemas eram enviados para estes a cada ano (Osgood, 2011). Seguindo a lógica do pensamento romano, observamos que a figura do princeps era, na verdade, construída como um ser que possuía características divinas. Os autores do principado faziam uso da expressão “Boas Novas” (em grego εὐαγγέλιον, em latim, o termo emprestado euangelium) para descrever “as ações ou eventos associados aos vários imperadores romanos que haviam ocorrido para o bem-estar do mundo” (Reasoner, 2013, p. 9).
Paulo de Tarso e a correspondência aos tessalonicenses
Uma das ferramentas de comunicação por toda a Bacia do Mediterrâneo eram as epístolas. Na antiguidade clássica, até o século I d.C., é evidente a escassez de documentos redigidos sobre o ato de escrever que chegaram até nós (Kerr, 2016). Sendo assim, considerando o alto índice de analfabetismo no mundo antigo, precisamos considerar que boa parte da população não teria acesso à leitura ou mesmo à escrita. “Os tipos de poder estabelecidos variam muito de impérios a grupos unidos, por um conjunto comum de textos, fossem estes os textos gregos, latinos, ou mesmo as Sagradas Escrituras” (Bowman; Woolf, 1998, p. 5). Da mesma forma que os judeus em suas sinagogas, os primeiros cristãos deram uma guinada no lugar ocupado pela cultura escrita nas sociedades antigas, reunindo-se para ler, ouvir e discutir os textos sagrados (Fox, 1998).
As epístolas eram documentos circunstanciais cuja finalidade era responder às inquietações concretas e momentâneas de tais comunidades. Mesmo assim, elas se constituem como os documentos que mais nos revelam sobre a figura de Paulo (Funari; Vasconcellos, 2017). Segundo as pesquisas mais recentes, são o texto mais antigo do corpus neotestamentário. De acordo com Lourenço (2020), existe hoje entre os estudiosos do Novo Testamento uma opinião quase consensual no sentido de considerar o livro de 1ª Tessalonicenses como a mais antiga das cartas que chegaram de Paulo. Também é praticamente consensual entre eles que a carta foi escrita por Paulo a partir de Corinto, talvez por volta de 50 a 51 d.C.
A congregação ou assembleia na cidade de Tessalônica foi fundada por Paulo após a sua permanência em Filipos. A carta nos leva a entender que os novos convertidos de Tessalônica haviam sido pagãos e se encontravam em uma posição ingrata diante dos cristãos provenientes da Judeia. Nesse sentido, podemos apontar elementos importantes que nos ajudam na compreensão da epístola dedicada aos cristãos de Tessalônica:
Agradecemos a Deus, sempre por todos vós, fazendo menção [vossa] nas nossas orações, incessantemente lembrados diante de Deus, nosso Pai, do vosso trabalho da fé, do esforço do amor; e de constância da esperança [provenientes] de Nosso Senhor Jesus Cristo, conhecendo irmãos amados por Deus, a vossa eleição, porque a Boa Nova não aconteceu para vós apenas a estas palavras, mas em poder e em espírito santo e com convicção abundante, do mesmo modo como sabeis quem nós fomos entre vós por vossa causa. E vos tornastes vossos imitadores e [também] do Senhor, tendo recebido a palavra em muita aflição com [a] alegria de um espírito santo, a ponto de vos terdes tornado um exemplo para todos os crentes na Macedônia e na Acaia (Bíblia, 2020,1Tess 1, 2 – 8).
Nessa perícope, podemos entender que a mensagem paulina nos apresenta questões importantes que remetem a uma expansão de uma mensagem “judaico-cristã” e ao modo como foi compreendida. Na descrição de sua atividade, o apóstolo conscientemente faz uso de descrições da ideia moral e filosófica (Malherbe, 1987, p.55). Sendo assim, levamos em consideração a importância de esta comunidade estar situada na província da Macedônia e como isto se refletiu na primeira epístola autêntica de Paulo de Tarso:
Não queremos, irmãos, que fiqueis na ignorância a respeito dos que morreram, para não andardes tristes como os outros, que não têm esperança. Pois se acreditarmos que Jesus morreu e ressuscitou, assim também Deus reunirá com Jesus os que em Jesus adormeceram. Eis o que vos dizemos, baseando numa palavra do Senhor: nós os vivos, os que ficarmos para a vinda do Senhor, à ordem dada, à voz do arcanjo e ao som da trombeta de Deus, descerá dos céus, e os mortos em Cristo ressurgirão primeiro, e depois nós, os vivos, os que ficamos, junto com ele seremos arrebatados sobre as nuvens, para irmos ao encontro de Deus nos ares (Bíblia, 2020,1Tess 4, 13 – 15).
Diante do exposto, notamos claramente que Paulo de Tarso acreditava que Jesus teria ressuscitado dos mortos e o seu retorno era imediato. Talvez esse tenha sido um dos principais temas desta epístola. Conduzimos a presente reflexão visando demonstrar a importância de Paulo de Tarso e seu diálogo com diferentes áreas do conhecimento. Paulo de Tarso não é um tema a ser explorado apenas pelo campo da teologia ou das ciências da religião. Nossa hipótese parte do pressuposto de que as epístolas paulinas nos dão indícios contundentes de que este não era o único que se aventurava ao falar do Jesus Ressuscitado. Em seu material, observamos Paulo em um confronto constante com diferentes grupos, que muitas vezes traziam mensagens antagônicas àquelas que ele havia preparado para os seus. Os dados das epístolas paulinas nos revelam que todas as comunidades às quais suas epístolas foram dirigidas eram compostas por diferentes camadas sociais e que os documentos buscavam muitas vezes corrigir, exortando-as no sentido de prezarem por uma unidade de fé. Uma missão de caráter delicado, tendo em vista o fato de Paulo apresentar ao longo de suas epístolas um empréstimo de elementos das culturas judaica (algo inerente à sua identidade) e greco-romana, aliados à vivência dentro de uma ordem imperial romana.
Para saber mais:
ABULAFIA, D. O Grande Mar: uma história humana do Mediterrâneo. Rio de Janeiro: Ed. Objetiva, 2014.
BÍBLIA NOVO TESTAMENTO: APÓSTOLOS, EPÍSTOLAS, APOCALIPSE. Traduzido por Frederico Lourenço. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2020.
BOWMAN, A. K.; WOOLF, G. Cultura escrita e poder no mundo 7ntigo. In: BOWMAN, A. K.; WOOLF, G. Cultura escrita e poder no mundo antigo (Org.). São Paulo: Editora Ática, 1998.
FOX, R. L. Cultura escrita e poder nos primórdios do cristianismo. In: BOWMAN, A. K.; WOOLF, G. Cultura escrita e poder no mundo antigo (Org.). São Paulo: Ática, 1998.
FUNARI, P. P. A.; VASCONCELLOS, P. L. Paulo de Tarso: Um apóstolo para as nações. São Paulo: Ed. Paulus, 2017.
HENGEL, M.; SCHWEMER, A. M. Paul between Damascus and Antioch: The unknown years. Westminster: John Knox Press, 1997.
KERR, L. S. Si uales, bene est, ego ualeo: algumas concepções do gênero epistolar greco-romano. Estudos Linguísticos, vol. 45, n. 3, p. 1133-1146, 2016.
MALHERBE, A. Paul and the Thessalonians: The Philosophic Tradition of Pastoral Care. Fortpress, 1987.
OSGOOD, J. Claudius Caesar: Image and Power in the Early Power. Cambridge: Cambridge University Press, 2011.
REASONER, M. Roman Imperial Texts: A Sourcebook. 1517 Media, 2013. https://doi.org/10.2307/j.ctt22nm6v4 Acesso: 20 Julho 2022.
SIMON, M.; BENOIT, A. Judaísmo e cristianismo antigo: de Antíoco Epifânio a Constantino. São Paulo: Pioneira/Editora da Universidade de São Paulo, 1987.
Imagem de capa: OPENAI. Paulo de Tarso na Tessalônica, século I d.C. [imagem digital]. São Francisco: DALL·E (OpenAI), 2025.