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por , especial para o LiceuOnline.

                                                                           Por Daniela Cristina Pacheco*, especial para o LiceuOnline.

Sabe-se que a narrativa das Metamorfoses ou o Asno de Ouro1 do autor romano Lúcio Apuleio (Século II d. C.) é um mosaico de histórias (historietas), aparentemente sem nexo entre si, de difícil caracterização em um único gênero literário2, mas que possuem um tema recorrente: a prática da magia. Prática explorada em seu conteúdo e forma profana e sagrada, constituída a partir de três vieses: o pedagógico, o aprendizado e a redenção por meio do feminino.

O conteúdo da obra é bastante conhecido. Em seu romance Apuleio conta a história de um jovem culto, parente materno do filósofo Plutarco, que viaja a negócios para a cidade de Hípata, província de Tessália. Após ouvir histórias sobre feiticeiras e práticas miraculosas de magia que ocorrera em algumas cidades e províncias Gregas, enche-se de curiosidade. O fato de essas cidades serem conhecidas pelas artes mágicas pode ter influenciado o protagonista Lúcio na busca incessante de se encontrar com o fantástico, envolvendo-se com a feitiçaria. Ao chegar a Hípata, hospeda-se na casa de Milão e Panfilia, uma mulher conhecedora das artes mágicas. Na casa de seus hospedeiros, Apuleio envolve-se com a escrava Fótis e por uma série de enganos, transforma-se em asno, e não em ave como era seu plano original.

A curiosidade de Lúcio o leva a praticar a magia de forma indevida, não ritualizada, e, como castigo, é transformado em asno, sofrendo diversas penitências na sua jornada em busca de redenção. Depois de muito sofrimento, Lúcio recorre à deusa Ísis que se compadece dele e, em um de seus festejos, o devolve à forma humana. Agradecido pelo ato bondoso da deusa, Lúcio se torna seu sacerdote e dá início ao ritual dos mistérios de Ísis e Osíris.

Nicole Fick, aponta que a obra foi escrita antes de 197 d.C., bem depois do processo de magia, que o autor padeceu, por ter se casado com uma viúva rica (Fick, 1985, p.133-134). Segundo autores como Hidalgo de La Veja e Phillipe Ward, se analisadas em conjunto, as obras de Apuleio possuem um sentido único que assinalam para o ensinamento e a distinção entre a boa e a má magia (La Vega, 1986, p.19; Ward, 1969, p.4). Assim, o autor estaria se justificando como alguém adepto das religiões de mistérios, porém com interesses filosófico, envolveu-se em práticas mágicas.

Quando pensamos em conteúdos com princípios e fins pedagógicos, de imediato nos remetemos ao tratamento do trágico na Antiguidade. Sentido este que, embora tenha sido tratado por meio de diferentes estéticas, foi definido normativamente por Aristóteles na poética3. Na construção da trama das figuras trágicas ideais ocorrem a mudança da fortuna (metabasis) e a prática do erro, a ofensa à ordem estabelecida, a chamada hamartia. Deste modo, a figura trágica precisava ter grande reputação e fortuna e, ainda apresentar traços de similaridade com os homens comuns para que se permitisse a identificação do público com a personagem. Sua queda deveria ser na proporção exata e possuir uma conexão causal, para induzir no público o que ele chama de philantropon, o sentimento de justiça natural. Caso houvesse um exagero, o conteúdo pedagógico se transformaria em “repulsa moral”, o que impediria que os objetivos educativos do gênero fossem amplamente alcançados. Na tragédia grega, a comunicabilidade entre deuses e homens, o desenvolvimento dos preceitos e tramas, se restringia ao plano humano. A reposição da justiça só poderia ser realizada neste nível.

Nas historietas satíricas de Apuleio há conteúdos trágicos, mas ocorrem mudanças. Ocorre o erro, a identificação das personagens, porém a recompensa está no nível do divino, identificado com os cultos isíacos. As personagens nem sempre possuem nexos causais em relação à sua hamartia. São, por vezes, homens comuns a que a tragédia se abateu. Entretanto, sua recompensa está na vida após a morte, como nos cultos orientais e estará posteriormente nas religiões de salvação. Se as personagens das grandes tragédias gregas ensinavam por seus erros a evitar, em Apuleio, por sua perfeição, são modelos que podem favorecer o desejo de imitação. Por uma série de mudanças estruturais no Império, pela instabilidade política e pelo sincretismo, haverá, portanto, uma refiguração do sentido trágico em Apuleio. Vamos encontrar essa mudança em algumas histórias, como na narrativa de Cárite e Tlepólemo4. Todavia, esse não será o sentido evocado quanto à prática da magia. A magia feminina em Apuleio é uma magia profana e só pode ser redimida em suas consequências trágicas se encarada de forma ritualística e sagrada.

Apuleio e seus contemporâneos acreditavam na magia, elemento que, por sua crença coletiva, segundo Marcel Mauss (2000), nos alerta para essa possibilidade, desde que seja colocada no patamar das forças coesivas de representação, como parte do imaginário social. A magia, entretanto, precisava adequar-se ao patamar da religião romana, pois esta se trata de uma religião mais de culto que de doutrina, em que o sacerdote é quase um técnico. Como personagem que usou da magia indevidamente, Lúcio tornou-se um asno. Lúcio é o anti-herói que em sua tragédia vai do mais baixo animal à redenção humana, mas isso não ocorre com as personagens femininas: elas são mulheres inconsequentes, que usam a magia sem a prática ritual necessária, visando interesses próprios.

As personagens femininas não são punidas, pois a trama é realista, já o nosso personagem principal toma ciência de suas ações para que as observe e aprenda com elas mesmas, a evitar aquilo que não deve ser feito. Observemos o contato de Apuleio com a magia de Panfília. Uma mulher casada, Panfília era rica e vivia no ócio. Era uma mulher adúltera que dava autonomia à escrava e que profanava os deveres do lar. Utilizava seu tempo praticando artes mágicas e isso afetava a cidade pelo medo, princípio sobre o qual se funda a magia malévola, diferente da magia religiosa inspirada pela piedade. A religião dos romanos foi politeísta e ritualista e não possuía dogma ou autoridade espiritual, era estritamente ligada às estruturas sociais, ao Estado e aos seus valores.

Cícero5 vinculou os romanos aos deuses deixando claro que a religião tinha uma função cívica, sendo baseada na pietas e na religio6. Pietas era o cumprimento dos deveres religiosos, além de significar, ainda os deveres com a família, e à pátria. A religio era compreendida pela prática do homem que realiza o culto pela atenção diligente e serena e não pela superstição, elemento impulsionado pelo medo, o temor aos deuses. O homem religioso não é o que teme, mas o que “considera atentamente”. Isso só se faz com o cumprimento de práticas rituais, diligentemente observadas, mas sem os excessos de escrúpulos temerosos próprios da superstição.

O culto não deveria ser uma expressão somente privada, mas uma obrigação da comunidade, dos magistrados que se tornaram membros das classes sacerdotais. A prática correta do culto garantiria a subsistência do Estado romano. O cidadão romano deveria participar dos ritos públicos como membro da Urbs.

Panfília era uma mulher que manipulava as forças elementais e fazia temer a cidade. A personagem Birrena adverte Lúcio: “guarda-te, guarda-te energicamente dos perigosos artifícios e da criminosa sedução dessa Panfília”(Livro II, V). Suas práticas eram de natureza individual e sem a ética da religio e da Urbs: Panfília utiliza-se de práticas mágicas para seduzir amantes e transforma os opositores em pedras, carneiros e outros animais7.

Conforme Durkhein (1977), o aspecto individual da magia leva à prática imoral, antissocial e desviante, rompendo com a função de coesão social e de solidariedade das religiões cívicas. Mesmo que ocorram práticas mágicas na religião, a magia laica tem recepção diferente nas sociedades em que é praticada. Diferente das práticas religiosas em que é preciso um tradutor, um intermediário entre o transcendente e o adepto, na magia laica, a manipulação das forças divinas se traduz num aprendizado da natureza. Elemento que se constitui da intermediação do Estado com as instituições a ele ligadas. Sabe-se, entretanto, que em Apuleio, a magia profana é o elemento que o faz bestializar-se, pois a magia profana não interessava à religião romana. Em Roma, Ísis não é mais a deusa egípcia da magia independente, mas a deusa da magia tutelada, ritualizada e orientada pelo Estado. Dessa forma, Apuleio ensina, pela sátira realista e pelos elementos trágicos nela contidos, que não se pode praticar magia de forma aleatória. Em sua pedagogia a deusa é essa força filosófica e transcendente que unifica na diversidade e que deve ser compreendida no bojo de normas ritualistas da religião romana.

Portanto, aspectos bem diferentes da magia e mitologia egípcia serão trabalhados na obra, a partir do feminino sagrado de Ísis em Apuleio. Nele, a deusa se apresenta em todo seu esplendor e natureza unificadora:

Venho a ti Lúcio, comovida por tuas preces, eu mãe da natureza o mundo inteiro me venera sob formas numerosas, com ritos diversos, sob múltiplos nomes. Os frígios, primogênitos dos homens, me chamam deusa-mater, e deusa do Pessinúncio; os atenienses autóctones, Minerva Cecropiana; os cipriotas banhados pelas ondas, Vênus Pafiana; os cretenses portadores de flechas, Diana Ditina; os siclianos trilingues, Prosérpina Estigia; os habitantes da antiga Elêusis, Ceres Acteana; uns Juno, outros Belona, estes Hecate, aqueles Ramnúsia. Mas os que o Sol ilumina com seus raios nascentes, quando se levanta e com seus últimos raios, quando se inclina para o horizonte, os povos das duas Etiópias e os egípcios poderosos por seu antigo saber honram-me com o culto que me é próprio chamando-me pelo meu verdadeiro nome: Rainha Ísis (Metamorfoses XI, 5).

Segundo diversos autores, Isis conhece um sucesso excepcional no mundo romano da fase helenística. Conquistará terras da Ásia Menor, da Grécia, Sicília e, em Roma, será inserida nos calendários oficiais em 71 d.C. Comparece nas moedas de Vespasiano (69-79) e Caracalla (211-217) a promove como divindade oficial do Império. Sua personalidade e atributos serão ampliados. Plutarco8 reconstrói a história mítica de Ísis.

Portanto, em Apuleio, a magia está ligada à teurgia (obra divina) e ao seu caráter filosófico. Influenciado pelo sincretismo e pela necessidade de assimilação dos cultos estrangeiros, refigurados, o sagrado feminino e a magia vai encontrar-se em Ísis, personagem a partir da qual ocorre sua redenção. Nos cultos isíacos assimilados em Roma, o ritual é revalorizado e a ética mágica acompanha um novo relacionamento com os deuses, que se preparam para as religiões salvacionistas e das recompensas pos-mortem dos campos de Ialu Osiríacos. O sagrado feminino é evocado pela magia teúrgica, ritual, em seu aspecto regenerador, de reunião e totalidade simbólica. Uma volta às origens com novos contornos.

Notas:

1 Apuleio intitulou a obra de Metamorfoses (Methamorphoseon Libri xi, também conhecida como Asinus Aureus), mas alguns tradutores a nomeiam como O Asno de Ouro. Segundo a tradutora do livro Ruth Guimarães (Apuleio. O Asno de Ouro. Trad. Ruth Guimarães. São Paulo, Ed. Cultrix, s/d), o termo “de ouro”refere-se a uma história extraordinária, fantástica.

O Asno seria o símbolo do mais baixo corporal e material, segundo Bakhtin, M. Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento. Brasília: UNB, 1999, p.67.

2 Conforme Sérgio Motta, Metamorfoses se caracteriza como uma sátira latina “que possui um estilo confessional em moldes de uma narrativa de viagem”. Para o autor: a sátira latina utiliza o modelo idealizante construída pelos os gregos no qual são descritas a sabedoria e a coragem do herói, e os mitos sagrados para contrapor uma representação anti-heróica caricatural dos tipos sociais e morais próximos do mundo real. (Motta, 2006 p. 162). Entretanto, encontraremos autores que identificam conteúdos trágicos na obra. A esse respeito ver: TEIXEIRA, Cláudia. O Sentido do Trágico em Apuleio: tradição e/ou ruptura? Atas do IV Congresso Internacional da Associação Portuguesa de Literatura Comparada. Estudos Literários/ Estudos Culturais. Évora, 2001. Disponível em http://www.eventos.uevora.pt/comparada/indice_geral.htm

3 Poética. Aristóteles. Imprensa Nacional/ Casa da Moeda.

4 Adaptação do mito de Ísis e Osíris em Apuleio.

5 Marcus Tullius Cicero (106 a.C./43 a.C.), foi um filósofooradorescritoradvogado e político romano. Escreveu De Natura Deorum, livro em que discute teologia.

6 Sanzi, Ennio. Cultos Orientais e Magia no Mundo Helenístico-Romano. Fortaleza: Ed. UECE, 2006.

7 Apuleio. Livro II, IV.

8 46-126 d. C . De Iside et Osiride.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

APULEIO, L. O Asno de Ouro. Trad. Ruth Guimarães. São Paulo, Ed. Cultrix, s/d.

ARISTÓTELES. Poética. Imprensa Nacional/ Casa da Moeda, 1986.

BAKHTIN, M. Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento. Brasília: UNB, 1999.

DURKHEIM, Emile. As Formas Elementares da Vida Religiosa. Lisboa: Editorial Presença/Martins Fontes, 1977.

MAUSS, Marcel. Esboço de uma Teoria Geral da Magia. Lisboa: Edições 70, 2000.

MOTTA, Sérgio Vicente. O Engenho da Narrativa e sua Árvore Genealógica: das origens a Graciliano Ramos e Guimarães Rosa. Editora UNES, 2006.

SANZI, Ennio. Cultos Orientais e Magia no Mundo Helenístico-Romano. Fortaleza: Ed. UECE, 2006.

SILVA, Semíramis Corsi. Aspectos da Religiosidade em Apuleio: entre magia e filosofia no II século D.C. Anais do II encontro Nacional do GT de História das religiões e Religiosidades. Revista Brasileira de História das Religiões – ANPUH – Maringá/PR, v.1, n.3, 2009. p. 11.

TEIXEIRA, Cláudia. O Sentido do Trágico em Apuleio: tradição e/ou ruptura? Atas do IV Congresso Internacional da Associação Portuguesa de Literatura Comparada. Estudos Literários/ Estudos Culturais. Évora, 2001. Disponível em http://www.eventos.uevora.pt/comparada/indice_geral.htm

*Daniela Cristina Pacheco é Mestre em História pela UFG. “Historiadora e pedagoga. Professorando por aí…”
Lattes: http://lattes.cnpq.br/9574471004893999

 

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Comentários...

This Post Has 35 Comments

  1. Eu só me orgulho cada dia mais de você Daniele Cristine, Parabéns pela escrita, quão perfeito , quanta dedicação, Excelente , Lindo lindo amei.

        1. Muito bom o texto! Parabéns Dani.Gostei.da parte onde se fala que a religião é algo filosófico onde devemos praticar sempre mas de uma forma pedagógica.😃

  2. Ótimo texto! Me possibilitou fazer uma “ponte” entre os enredos do passado com os que observo no presente. O que me reforça ainda mais a citação: “para que mudar a fórmula, já que o público se renova!”

  3. Novamente me deparo com um texto maravilhoso, repleto de conhecimento e fatos relevantes, além de uma ótima indicação para leitura. Parabéns!

  4. Somente uma mente brilhante como dessa Mestre é capaz de produzir uma análise tão criteriosa de uma obra como essa. É sempre um prazer ler seus textos,espero os próximos.

  5. É com grande satisfação que parabenizo o texto de Daniela Pacheco! Texto excelente! É isso aí, continue nos prestigiando com suas reflexões!

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