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por , especial para o LiceuOnline.

Por Tatiana Coelho*, especial para o LiceuOnline.

 

O homem é o único animal que ri! Desde a antiguidade essa singularidade humana desperta curiosidade de estudiosos das mais diversas áreas na tentativa de compreender o fenômeno do riso e do risível.* Aristóteles já alertava para seu potencial subversivo, Freud apontou as relações do humor com o inconsciente e seus efeitos no campo do cômico, Bergson, além de ressaltar seu aspecto cognitivo, alertou que o riso não possui uma essência e sim uma história, afirma que o terreno da comicidade não pode ser limitado apenas em seu aspecto cognitivo, devendo o historiador procurar a essência do riso e do cômico no terreno da sociedade. Nesta perspectiva tomamos como objetos do pensamento o riso e o risível que se propõem como lugares privilegiados de uma maneira de se ver e de se compreender o mundo. Afinal, por que se ri? Como se ri? De que, do lado de quem e contra quem se ri?

Ícone da imprensa alternativa nos anos de chumbo do Brasil, o periódico O Pasquim é comumente reverenciado em nossa historiografia como um desses fenômenos do risível. Fundado ainda em sessenta e nove, pouco tempo após a outorga do AI-5 a onda Pasquiana invadiu o regime militar e através de suas charges fez rir um país inteiro mergulhado num contexto de silêncio, medo e opressão. O Pasquim não derrubou a ditadura, mas a ridicularizou, a desmoralizou, sendo o riso sua principal arma. E Ziraldo foi um dos grandes chargistas da infantaria composta por Jaguar, Fortuna, Claudius, Millôr Fernandes, Prósperi, Sérgio Cabral, Luís Carlos Maciel e Tarso Castro que, com suas charges, atacavam pelas brechas, pelas margens, combatendo o inimigo que se travestia de valores morais, cívicos e patrióticos tão difundidos nesse período.

O sucesso do Pasquim pincelou tempos, imprimiu traços e atualizou significados! As “melhores” charges do Pasquim produzidas pelo cartunista Ziraldo foram selecionadas em um livro álbum que reverencia seu traçado sobre aqueles anos de chumbo. “O Pasquim foi o fenômeno mais original do jornalismo impresso nos anos de chumbo… e Ziraldo foi o resumo dessa revolução…” É assim que o periódico e o chargista são consagrados na obra “Só dói quando eu rio. Treze anos daqueles tempos contados pelo humor de Ziraldo”, publicado em 2010. A obra com as “melhores charges de Ziraldo” e as que mais “fizeram rir” naqueles tempos, reeditam mais do que meras imagens, transpondo no tempo e na memória poderosas representações.

 

Só dói quando eu rio é própria piada-metáfora do estado de espírito de então – um país como que atravessado por uma espada e precisando rir. Pode se reconstituir aquele período, fazer sua antropologia – os usos e costumes, cultura, ideias, maneiras de pensar e dizer – por meio das palavras e imagens das charges, cartuns e dicas, em suma, do humor polifônico desse esterno menino maluquinho.*

 

O prefácio escrito por Zuenir Ventura* convida o leitor a pensar imagens como um lugar de mundo, pincelando maneiras de pensar e representar este mundo. Assim como os textos os contornos de Ziraldo nos convidam a leitura de uma trama e de uma época que, sob os riscos do chargista, dar-se a ver e dar-se a rir. Sob a ótica de gênero* os traços e risos se dão como significantes, que sob o olhar crítico e interpretativo do historiador se revelam como poderosos significados. É o que evidenciamos com a charge reeditada e presente no livro álbum intitulada de “O Piche”:

Editada em 1980 e reeditada em 2010, a charge intitulada “O piche” se remete ao lema carregado nos cartazes pelo movimento feminista durante a década de setenta: “Que as mulheres decidam. Nosso corpo nos pertence”. De acordo com a historiadora Rachel de Soihet, Ziraldo “modificara o significado da frase, valendo-se de um dos recursos corriqueiros em relação à representação das mulheres quando se buscava sua desqualificação”, uma vez que “ao lado do dístico lançado pelas feministas, apresentava uma mulher com formas das mais exuberantes, exaltando a sua nudez”.

Com traços que reforçavam estereótipos do “feminino” e do “feminista”, o chargista ridicularizou, debochou, desqualificou e fez um país inteiro rir da crescente onda de conscientização das mulheres sob o domínio histórico de seu corpo e de seu lugar social que tomava conta do país naquele momento. Em O Piche, percebemos uma tensão entre o discurso feminista articulado na década de setenta e o discurso conservador em torno dos corpos femininos representado na obra do chargista.

Na figura do lado esquerdo é nítida a rigidez das mãos da mulher que representa a feminista em contrapartida das mãos da mulher ao lado. O punho esquerdo rigidamente fechado propõe ao leitor a relação com as feministas de setenta que em sua maioria atuavam na esquerda política do período. Os traços quadrados e alargados reforçam a intenção da imagem de masculinizar a feminista. Na figura da direita por sua vez, os traços tendem a reforçar os estereótipos da sensualidade e beleza. O corpo “violão”, os cabelos lançados ao vento são representados através de traços circulares que tinham como objetivo exaltar as formas exuberantes do corpo feminino.

Assim, “a charge provocou risos e também indignação, principalmente das feministas envolvidas na causa” que logo decidiram “se vingar pichando o muro da casa do autor, com a frase: “Ziraldo, o Doca Street do humor.” Ziraldo chegou a comentar o episódio uma nota do Pasquim, dizendo:

 

Apesar de profundamente neuróticas, agressivas e carentes, bastante inteligentes e até mesmo brilhantes. São em geral, muito bem informadas, cheias de cursos e diplomas. Como, porém, a maioria das pessoas que se informam de-formadamente, não conseguem transar bem a chamada decodificação da mensagem humorística.*

 

O riso reeditado no tempo convida os historiadores a pensarem a posição chave exercida por esse fenômeno na cultura moderna ocidental. Para Verena Alberti os estudos contemporâneos apontam para uma perspectiva que tratam o riso no contexto de oposição entre a ordem e o desvio, “o riso revelaria o não normativo, que o desvio e o indizível fazem parte da existência”. Este potencial transgressor e desordenador é comumente associado ao fenômeno do riso e do risível, mas pouco se questiona o lugar de operação desse fenômeno. Assim atentamos para fala de Minois, quando este propõe pensar o lugar de articulação do riso e do risível. Quem faz rir? Quem opera o campo do risível?

 

(…) foi o lugar do riso, na vida e na sociedade, que mudou, assim como o discurso sobre o riso, a maneira como ele é interpretado, analisado, percebido. O fato de terem lhe consagrado numerosos tratados, em todas as épocas, demonstra, ao menos, que todas as sociedades lhe conferiram um lugar importante, e a maneira como ele foi percebido é reveladora das grandes variações de mentalidade.*

 

Partindo dessas perspectivas e amparada pelos estudos de gênero propomos pensar o fenômeno do riso para além do que ele revela pensar como ele se opera e de que lugar se opera. Do riso autorizado para o riso historicizado: O riso e o risível como o traço de uma trama que propõe explicitar a tensão dos discursos enunciados nos riscos de Ziraldo, em contrapartida com o discurso feminista que se articulava durante a década de setenta. Mais do que uma nova possibilidade do fazer historiográfico, esse esboço alerta para a importância de uma releitura do fenômeno do riso e da operação do risível em nossa historiografia e seu aspecto revelador quando analisado sob a ótica de gênero.

 

 

*Tatiana Coelho, professora da rede estadual de ensino, atua enquanto professora do programa Residência Pedagógica ( PUC/GO) Mestra em História pela PUC/GO. Produtora de conteúdo nos canais Feminivinho e TV Resistência Contemporânea.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/8807077638646758.

 

 

 

Referências:

  • Verena Alberti define risível como aquilo que faz rir. Ver: ALBERTI, Verena. O riso e o risível na história do pensamento. Verena Alberti, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed. 2002.
  • ZIRALDO, 2010, p.5.
  • Zuenir Ventura é jornalista e escritor. É colunista do jornal O Globo.
  • As discussões sobre as relações de gênero, que conforme Scott pode ser brevemente entendida como “um elemento essencial das relações sociais baseado nas diferenças sociais percebidas entre os sexos (…) o gênero é uma forma primária de dar significado as relações de poder”.(SCOTT, Joan. História das Mulheres. In: Peter Burke (org.). A escrita da história: novas perspectivas. Tradução de Magda Lopes. São Paulo, Editora UNESP 1992. p. 86.)
  • ZIRALDO, 2010. p. 322
  • MINOIS, Georges (1946). História do riso e do escárnio. Georges Minois; Tradução Maria Helena O. Ortiz Assunção. São Paulo, Editora UNESP, 2003, p. 629.
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